Revista médica e científica internacional dedicada a profissionais e estudantes de medicina veterinária.
Veterinary Focus

Número da edição 33.1 Sistema Gastrointestinal

Infecção por giardíase em cães

Publicado 10/11/2023

Escrito por Rolf R. Nijsse e Paul A.M. Overgaauw

Disponível em Français , Deutsch , Italiano , Română , Español , English e 한국어

Embora a infecção por giárdia seja comumente identificada em cães, a decisão quanto à sua importância (i. e., se ela se trata de um achado significativo) e a seleção da melhor abordagem terapêutica para uma determinada situação podem muitas vezes levantar dúvidas na prática clínica. Este artigo visa fornecer algumas respostas para o clínico.

Um cisto de giárdia intacto nas fezes

Pontos-chave

A Giardia duodenalis tem prevalência variável na população canina; de modo geral, a infecção é assintomática, mas pode causar fezes moles ou diarreia aquosa.


Tanto o fembendazol como o metronidazol são recomendados para o tratamento de giardíase, e a escolha do clínico será orientada pelo histórico e pelas circunstâncias de cada paciente.


Um animal positivo para giárdia, mas sem sinais clínicos, não costuma necessitar de tratamento.


Em caso de recidiva da giardíase, boas medidas de higiene ambiental, evitando que os cães bebam água da superfície ou ingiram fezes, podem ajudar a erradicar a infecção.


Introdução

Com a disponibilidade de métodos de diagnóstico mais eficientes, o parasita unicelular Giardia duodenalis é, hoje em dia, frequentemente detectado em cães e gatos. No entanto, a infecção pode variar em termos de gravidade, desde uma forma subclínica até um quadro com uma variedade de sinais gastrointestinais (GI), e o clínico pode ter muitas dúvidas em relação a esse parasita – por exemplo, a sensibilidade e a especificidade dos testes de diagnóstico, a necessidade de tratar ou não, bem como as melhores opções terapêuticas. Além disso, os sinais clínicos podem persistir após o tratamento ou, então, o exame de fezes pode permanecer positivo apesar da terapia bem-sucedida e da melhora clínica; portanto, considerando que esse parasita pode levantar muitas dúvidas, é importante que o diagnóstico, o tratamento e o controle das infecções por giárdia sejam claros e inequívocos. As respostas – às vezes, confusas – podem ser obtidas de diferentes fontes: de algum parasitologista, de um especialista em trato GI, de um laboratório ou do fabricante de medicamentos registrados para o tratamento da giárdia. Portanto, não é uma tarefa fácil fornecer orientações gerais válidas em todas as situações, mas uma abordagem unificada para infecções por giárdia leva a um melhor controle dessa doença e garante que qualquer outro problema GI presente possa ser identificado em um estágio precoce (inicial). Este artigo tem como objetivo oferecer informações para fundamentar tal abordagem.

Epidemiologia

O flagelado Giardia duodenalis (sinônimo G. lamblia, G. intestinalis) ocorre mundialmente como um protozoário parasita intestinal de mamíferos (incluindo seres humanos), aves, répteis e anfíbios. Com a genotipagem, o parasita pode ser dividido em 8 grupos (conhecidos como grupos A a H) – que, geralmente, exibem clara especificidade de hospedeiro. Os grupos A e B ocorrem em seres humanos, C e D em cães, e F em gatos. Às vezes, os grupos A e B são encontrados em cães e gatos, mas até o momento os grupos C, D ou F raramente são demonstrados em humanos  1,2.

A prevalência de giárdia em humanos varia de 0,4-7,5% nos países ocidentais a 8-30% em países não industrializados 3; além disso, estima-se que mais de 1 bilhão de pessoas em todo o mundo estejam infectadas com o parasita 4. As taxas de infecção em humanos, cães e gatos variam consideravelmente, de acordo com o país, as condições de vida e os métodos de teste. Na Europa, relatam-se prevalências de 3-7% em cães domésticos, mas em canis essa prevalência pode chegar a 46% 3,5. Em países não industrializados, o parasita pode ser encontrado em 10-30% dos cães de estimação 3. Em um estudo holandês que analisou 381 cães sem sinais, os cães de caça apresentaram a maior prevalência de giárdia (65%), enquanto um grupo aleatório de cães de estimação no mesmo estudo teve uma prevalência de 8%. Outro estudo relatou uma prevalência de 25% em amostras fecais, enviadas para um laboratório de diagnóstico, de 192 cães que apresentavam sinais clínicos gastrointestinais 6.

Ciclo de vida

A giárdia tem um ciclo de vida direto. Após a ingestão de cistos infectantes presentes em alimentos, na água de bebida ou no ambiente, os trofozoítos móveis excistam-se na parte anterior do intestino delgado e, em seguida, aderem-se à mucosa com uma ventosa ventral. Esses trofozoítos, por sua vez,  multiplicam-se por reprodução assexuada; depois desse processo, eles encistam-se mais abaixo no intestino delgado e, então, são excretados nas fezes em grande número (às vezes, de forma intermitente) por semanas a meses (Figura 1). Embora trofozoítos móveis possam ser vistos em fezes frescas (recém-coletadas) ainda quentes se houver passagem intestinal acelerada (ou seja, diarreia), eles não sobrevivem à passagem gástrica e, portanto, não são infecciosos (Figura 2). Os cistos imóveis são altamente resistentes (daí os níveis ambientais elevados de maneira persistente) e são infecciosos de imediato uma vez excretados (Figura 3). A contaminação orofecal se dá pela ingestão de cistos através da coprofagia ou por meio de pelagem, alimentos, solo ou água de bebida contaminados por fezes. Em seres humanos, foi demonstrado que a infecção pode ocorrer com um número muito baixo (10-100) de cistos 7. A infecção pode permanecer ativa por semanas a meses e ser aguda, crônica ou subclínica. O período de incubação em cães é de quatro a dezesseis dias, e o tempo mínimo entre o momento da infecção e a primeira oportunidade de detecção do parasita nas fezes (período pré-patente) é, em média, de sete dias. Embora os cistos possam sobreviver por meses no ambiente, eles são sensíveis à luz solar e à desidratação, além de serem bastante reduzidos em termos numéricos por ciclos de congelamento-descongelamento 5,8; quanto mais frio e úmido for o ambiente, mais tempo os cistos permanecerão infecciosos.

O ciclo de vida da Giardia duodenalis

Figura 1. O ciclo de vida da Giardia duodenalis.
© ESCCAP/Redrawn by Sandrine Fontègne

Os portadores assintomáticos de giárdia9 podem infectar o ambiente, sem ser notados por um longo período de tempo. Supõe-se que a infecção induz imunidade parcial, o que diminui os sinais clínicos, e a infecção finalmente desaparece; depois disso, o hospedeiro apresenta uma resistência limitada à reinfecção 5.

Um trofozoíto de giárdia nas fezes (círculo em vermelho) (aumento de 600x).

Figura 2. Um trofozoíto de giárdia nas fezes (círculo em vermelho) (aumento de 600x).
© Vet. Faculty, Utrecht University

Um cisto de giárdia intacto nas fezes (círculo em vermelho) (aumento de 600x).

Figura 3. Um cisto de giárdia intacto nas fezes (círculo em vermelho) (aumento de 600x).
© Vet. Faculty, Utrecht University

Sinais clínicos

A infecção por giárdia é geralmente de natureza subclínica e muitas vezes autolimitante, mas pode causar fezes moles ou viscosas intermitentes crônicas e até mesmo diarreia aquosa. Além disso, podem ocorrer anorexia, vômitos, emaciação e letargia, especialmente em (a) animais com imunidade reduzida, (b) nos filhotes, (c) na presença de infecção concomitante, ou (d) em cães de trabalho. Quando filhotes jovens são infectados, pode-se observar um retardo de crescimento e desenvolvimento.

No intestino, observa-se pouca inflamação na fase aguda. Má digestão, má-absorção e má secreção explicam o quadro clínico. A gravidade dos sinais é altamente dependente de vários fatores, incluindo a cepa de giárdia, a imunidade, idade e estado nutricional do hospedeiro, bem como a presença de quaisquer outras infecções. Todavia, se um hospedeiro também tiver uma carga parasitária de vermes, isso parece inibir o desenvolvimento da população de giárdia, sendo encontrado um número menor de cistos ao exame microscópico 10. O tratamento com anti-helmínticos pode, portanto, aumentar a suscetibilidade à infecção por giárdia, provavelmente porque a atividade das células T-helper 2 induzida por vermes garante uma boa resposta imune contra giárdia11,12. Embora não ocorra invasão da mucosa pelo parasita, foram descritas alterações em seres humanos dentro e fora do trato GI, capazes de levar ao retardo do crescimento e até mesmo à emaciação, bem como alterações pós-infecciosas crônicas, novamente tanto dentro do trato GI quanto em outras partes do corpo 13

Considerando que a prevalência de giárdia varia muito, pode ser difícil prever com que frequência ela é responsável pelos sinais clínicos em cães. A infecção não foi significativamente associada a fezes moles em um estudo recente de 1.291 cães de várias origens (ou seja, cães domésticos, cães de abrigo, cães de caça e aqueles mantidos em laboratório), embora os cães domésticos tenham uma probabilidade expressivamente maior de testar positivo para giárdia se tiveram diarreia. Cães jovens e cães em canis eram significativamente mais propensos a serem positivos para o parasita em testes, e essas associações foram consistentes em diferentes métodos de diagnóstico. Foi observado que cães jovens e cães com sinais clínicos excretam o maior número de cistos de giárdia 10.

Testes de diagnóstico

Há vários testes disponíveis para a detecção do parasita giárdia 6,14; entre eles: 

  • Esfregaço fecal (realizado com o uso de fezes finas ainda quentes, visualizadas imediatamente quanto à presença ou ausência de trofozoítos em movimento)
  • Técnica de flutuação passiva
  • Flutuação por centrifugação-sedimentação 
  • Testes rápidos (ELISA) no local de atendimento (bancada) (baseados geralmente na detecção de proteína da parede do cisto nas fezes)
  • Teste de imunofluorescência/ensaio de imunofluorescência direta 
  • Reação em cadeia da polimerase (PCR)
     

A sensibilidade relativa de cada método está exibida na Figura 4. Observe que os testes de imunofluorescência e PCR só podem ser realizados em laboratórios especializados.

Visão geral da sensibilidade dos vários testes de diagnóstico para giárdia.

Figura 4. Visão geral da sensibilidade dos vários testes de diagnóstico para giárdia.
© Vet. Faculty, Utrecht University

Os diferentes testes disponíveis foram avaliados em, pelo menos, um estudo. Amostras fecais de 573 cães foram examinadas quanto à presença de G. duodenalis, utilizando uma variedade de métodos (flutuação por centrifugação-sedimentação, análise microscópica, ensaio de imunofluorescência direta, ensaio imunocromatográfico enzimático rápido e qPCR). Foi concluído que todos os testes eram altamente específicos; nesse caso, o teste rápido apresentou a maior especificidade relativa (99,6%), enquanto a qPCR, a menor (85,6%). As sensibilidades relativas foram muito mais variáveis; nesse aspecto, a qPCR revelou a maior (97,0%) sensibilidade, ao passo que a flutuação por centrifugação-sedimentação, a menor (48,2%). O ensaio de imunofluorescência direta era mais sensível do que o teste rápido no local de atendimento, porém um pouco menos específico. Os métodos que envolvem microscopia para a identificação de cisto ou a detecção de parede cística devem ser utilizados nos casos em que é necessária uma alta especificidade 6; no entanto, é discutível se há necessidade disso para o diagnóstico na investigação de casos clínicos de diarreia.

Como a sensibilidade e a especificidade dos vários testes de diagnóstico não são 100%, um resultado negativo não exclui completamente a infecção, e um resultado positivo não garante a presença de infecção por giárdia. Os trofozoítos são detectados principalmente em casos de diarreia grave, e os cistos tendem a ser excretados em número moderado e de forma intermitente. Por outro lado, um resultado verdadeiro-positivo no teste nem sempre significa que giárdia é a causa dos sinais clínicos, mas indica apenas a presença dos cistos (ou proteínas da parede cística). Em um estudo de 152 cães domésticos saudáveis e sem sinais clínicos, foram encontrados cistos de giárdia nas fezes em 15% dos animais através do teste de flutuação por centrifugação-sedimentação 15, enquanto em um estudo de 8.685 cães com diarreia ou vômitos, 24,8% dos animais testaram positivo para giárdia no teste rápido de ELISA 16.

Como os cistos de giárdia podem ser excretados de maneira intermitente, o exame de fezes com flutuação por centrifugação-sedimentação pode produzir um resultado falso-negativo, especialmente se um animal estiver excretando apenas uma quantidade moderada de cistos. Entretanto, a confiabilidade aumenta quando as fezes de três dias consecutivos são submetidas a exame. Isso não se aplica aos testes rápidos de bancada cada vez mais comuns, em que uma única amostra é suficiente para um resultado confiável. Uma vantagem do método de flutuação por centrifugação-sedimentação é que ele pode fornecer informações sobre a presença de outros parasitas, enquanto muitos testes rápidos só detectam a giárdia. Na verdade, estudos mostraram que infecções mistas são frequentemente encontradas em cães com diarreia 7, portanto, um exame geral de fezes pode agregar valor. Além das infecções por vermes (Figura 5), infecções por protozoários como Cystoisospora spp. também devem ser consideradas (Figura 6). Com o teste rápido, pode ocorrer resultado falso-positivo se a proteína da parede cística ainda estiver presente no intestino, mesmo quando não restam cistos viáveis; as proteínas ainda podem ser detectadas por 1 a 2 dias após a infecção ter passado (devido ao tempo de trânsito desde o intestino delgado até a excreção fecal). Na prática, às vezes se observam resultados positivos nos testes rápidos de bancada em animais sem sinais clínicos após o tratamento, quando outros testes de diagnóstico retornam um resultado negativo.

Infecção mista com cistos de giárdia (setas de cor vermelha) e ovo do nematódeo Toxocara (aumento de 400x) nas fezes.

Figura 5. Infecção mista com cistos de giárdia (setas de cor vermelha) e ovo do nematódeo Toxocara (aumento de 400x) nas fezes.
© Vet. Faculty, Utrecht University

Como a giárdia também pode estar presente em cães sem sinais, o quadro clínico sempre deve ser o fator decisivo; caso se detecte a presença de trofozoítos, cistos ou proteínas da parede cística em um cão saudável que não apresenta sinais clínicos, não é necessário iniciar a terapia, embora seja útil monitorar o animal. Contudo, a situação pode ser muito diferente se um animal assintomático com teste positivo for introduzido em uma população negativa de animais suscetíveis.

Para animais com trofozoítos detectados em esfregaço fecal ou nos casos em que há um resultado positivo na flutuação por centrifugação-sedimentação ou no teste rápido de bancada com sinais clínicos compatíveis, a terapia é um plano de ação útil. Cães em abrigos e canis geralmente mostram sinais persistentes ou recorrentes sugestivos de infecção por giárdia e, com frequência, apresentam resultados positivos. Não há uma clara correlação entre o número de cistos encontrados nas fezes e a gravidade da infecção. O mesmo se aplica à presença de trofozoítos nas fezes: sua detecção não indica necessariamente infecção grave, mas sinaliza o transporte acelerado pelo intestino (ou seja, diarreia), que pode ser atribuído à existência de giárdia ou a outras causas.

Infecção mista em amostra de fezes, exibindo giárdia (setas de cor vermelha) e alguns cistos de Cystoisospora (aumento de 200x).

Figura 6. Infecção mista em amostra de fezes, exibindo giárdia (setas de cor vermelha) e alguns cistos de Cystoisospora (aumento de 200x).
© Vet. Faculty, Utrecht University

Tratamento

Cães domésticos

Um curso terapêutico de três dias com fembendazol (50 mg/kg a cada 24 horas) é aprovado em alguns países para o tratamento de infecções por giárdia em cães e constitui o fármaco de primeira escolha 17,18,19; todavia, três dias de terapia podem ser insuficientes em alguns casos, havendo o risco de autoinfecção/reinfecção. Por isso, o tratamento de duração mais longa (por exemplo, até 10 dias) é, às vezes, recomendado, embora seja importante notar que isso pode estar fora das recomendações do fabricante em muitos países 20. Ao lidar com infecções clínicas, as regiões do períneo, os quartos traseiros e os membros posteriores do paciente podem ser lavados (por exemplo, com xampu de clorexidina) para remover os cistos da pelagem. Isso é particularmente útil se o risco de reinfecção a partir do ambiente for muito baixo e, portanto, a probabilidade de autoinfecção de um animal que se lambe for relativamente alta. É sempre recomendável recolher as fezes o mais rápido possível após a defecação.

Se não houver melhora suficiente após uma semana de tratamento e outras causas, como infecções concomitantes, forem descartadas, a terapia poderá ser repetida. Se necessário, o metronidazol (25 mg/kg a cada 12 horas por cinco dias, ou conforme recomendado na ficha técnica) é uma opção alternativa. Lembre-se que, às vezes, podem ocorrer efeitos colaterais neurológicos com esse medicamento; no entanto, há algumas evidências de que uma dose de 25 mg/kg a cada 24 horas não só é eficaz, mas também reduz consideravelmente o risco de efeitos colaterais 5,16. O metronidazol deve ser utilizado com cautela em função de problemas de resistência a antibióticos.

Se houver vários cães em um ambiente doméstico, deve-se ter em mente que a reinfecção pode ser causada não apenas pelo próprio paciente ou pelo ambiente, mas também por um portador assintomático presente na casa; por essa razão, talvez seja prudente testar os outros animais desse ambiente também. 

Além da medicação, uma dieta gastrointestinal de fácil digestão pode ajudar na recuperação, especialmente nos casos em que o metronidazol foi utilizado, pois esse fármaco pode ter um impacto negativo na flora intestinal. Algumas publicações recomendam uma dieta pobre em fibras e carboidratos, porém rica em proteínas, para impedir o rápido crescimento e multiplicação de giárdia e Clostridium spp. Todavia, às vezes se observa uma melhora utilizando uma dieta com maior teor de fibra bruta e menor digestibilidade. A alteração do substrato, juntamente com a imunidade do hospedeiro e possível uso de medicação, pode retardar o crescimento da giárdia a tal ponto de haver uma inversão do equilíbrio imunológico e o controle da infecção pelo próprio hospedeiro. 

O prognóstico da giardíase costuma ser bom; entretanto, em animais jovens, desidratados ou mais idosos e naqueles com imunidade reduzida, há maior risco de complicações; por exemplo, a adesão dos trofozoítos de giárdia pode levar à ruptura das junções estreitas do epitélio intestinal, resultando potencialmente em infecções bacterianas secundárias 21. A experiência mostra que, apesar de todas as medidas, alguns casos crônicos podem persistir com pouca ou nenhuma resposta à terapia. Se o animal foi tratado e a giárdia não estiver mais presente, mas os sinais clínicos persistirem, recomenda-se uma investigação mais aprofundada – pesquisando, por exemplo, a presença de infecções por outros protozoários, inflamação intestinal crônica e alergias alimentares. 

Paul A.M. Overgaauw

A infecção por giárdia é geralmente de natureza subclínica e muitas vezes autolimitante, mas pode causar fezes moles ou viscosas intermitentes crônicas e até diarreia aquosa

Paul A.M. Overgaauw

Canis

Para grupos maiores de animais em condições de canil com infecção comprovada por giárdia, é aconselhável dividir os animais em grupos menores ou alojá-los individualmente. Nessa circunstância, também é útil tratar os animais assintomáticos que testem positivo para giárdia, a fim de reduzir ao máximo a contaminação ambiental. Ao término do período de tratamento, os animais devem ser lavados e transferidos para um recinto limpo, seco e desinfetado. Obviamente, é preciso tomar cuidado para garantir que os animais não tenham acesso a fontes naturais de água potencialmente contaminadas depois disso.

Em um estudo, foi descrito o controle de giárdia em um grupo de cães de teste 22, em que Beagles mantidos individualmente foram tratados com uma combinação de febantel (um precursor do fembendazol)/praziquantel/pirantel por três dias. Os recintos, construídos em aço inoxidável com piso liso de epóxi, foram desinfetados diariamente com compostos de amônio quaternário ou solução de hipoclorito de sódio (alvejante). Embora a última substância seja de uso comum, normalmente há relatos de um efeito insuficiente. Apesar disso, verificou-se que a giárdia estava novamente presente em vários cães após 17-24 dias, e todos os cães voltaram a apresentar diarreia. Quando os cães foram lavados no último dia de repetição do tratamento e depois transferidos para um recinto limpo, os problemas desapareceram.

Rolf R. Nijsse

Um resultado verdadeiro-positivo no teste nem sempre significa que a giárdia é a causa dos sinais clínicos, mas sim que os cistos (ou proteínas da parede cística) estão presentes

Rolf R. Nijsse

Ambiente

Mediante a ocorrência de recidivas (e especialmente em canis), podem ser feitas tentativas para reduzir a carga infecciosa pelo tratamento do ambiente, sempre que possível. A reinfecção pode ocorrer facilmente se um cão ingerir as fezes de outros animais ou beber de lago de jardim ou poças d'água contaminados. O plano de ação, portanto, depende da situação. 

Depois de limpar as superfícies lisas do ambiente doméstico e deixá-las secar por completo, é essencial tornar os cistos inativos por meio da desinfecção com um composto de amônio quaternário. Contudo, esses compostos não estão amplamente disponíveis para uso doméstico e funcionam apenas em um ambiente limpo, sem resíduos de sabão. Para uma desinfeção eficaz, o agente deve permanecer em contato com a superfície por um período de tempo suficientemente longo, em geral 5 minutos no mínimo; por essa razão, sempre se deve consultar o folheto informativo do fabricante. Carpetes e móveis de tecido podem ser tratados com água quente ou vapor (5 minutos a 70°C ou 1 minuto a 100°C) 8, no entanto, é recomendado fazer testes prévios para garantir que as superfícies resistam a esses métodos. Água quente (lava-louças, máquinas de lavar) também pode ser usada para desinfetar vestes, roupas de cama, brinquedos e vasilhas de alimento e, novamente, a duração do tratamento depende da temperatura; a água a 45°C desinfeta em 20 minutos, mas esse processo de desinfecção requer apenas 5 minutos com a água a uma temperatura de 70°C. Uma secadora de roupa e a luz solar também podem contribuir significativamente para o processo de desinfecção. Se algum carro for utilizado para o transporte de cães acometidos (incluindo, por exemplo, um serviço de passeio para cães), ele também deverá ser desinfetado. Como a giárdia também pode causar infecção através da água de superfície, os cães devem ser impedidos de beber água de ambientes externos e lamber a grama, entre outras coisas, o máximo possível. 

Acompanhamento e possível reinfecção

Considerando o período pré-patente de pelo menos sete dias, recomenda-se repetir o exame de fezes em infecções clínicas não antes de oito a dez dias após o término do tratamento. A repetição do exame só é realmente útil se o animal ainda apresentar sinais clínicos ou se este for transferido para uma população (suscetível) fechada livre de giárdia. Se os sinais persistirem, deve-se considerar a possibilidade de outra causa; todavia, a recidiva é um problema em potencial, seja por reinfecção ou possivelmente por eficácia insuficiente da terapia instituída ou falta de conformidade a essa terapia. A Figura 7 apresenta um resumo dos vários procedimentos de diagnóstico e tratamento a serem adotados.

Um algoritmo para o diagnóstico e tratamento de infecções por giárdia em cães (modificado a partir da referência 25).

Figura 7. Um algoritmo para o diagnóstico e tratamento de infecções por giárdia em cães (modificado a partir da referência 25).

A giárdia é uma zoonose?

Com frequência se fala que a Giardia spp. de cães e gatos também pode infectar humanos, mas será que esse parasita realmente é uma zoonose? Na verdade, o risco de transmissão de cães ou gatos para humanos é muito baixo 23,24. Os grupos específicos de giárdia (C e D) de cães e (F) de gatos raramente são encontradas em humanos 3. Por outro lado, os grupos de giárdia de humanos podem circular em populações de cães e gatos, e os humanos podem aparentemente ser a fonte de infecção para esses pets; a partir daí, tais animais representam um risco zoonótico. Nos casos em que tanto os membros da família como os pets apresentam sintomas sugestivos de infecção por giárdia, é possível a transmissão mútua de um grupo A ou B de humanos. Em casos diagnosticados de infecção por giárdia em um pet, o médico-veterinário pode questionar sobre a presença de sinais gastrointestinais em algum membro da família e, se a resposta for positiva, pode aconselhar a consulta com um médico.

Considerações finais

Exame coprológico, flutuação por centrifugação-sedimentação e testes rápidos de bancada podem ser utilizados para o diagnóstico de giárdia em cães levados à clínica. Se houver sinais clínicos e resultado positivo no teste de giárdia, o fembendazol é a terapia de primeira escolha; no entanto, um animal saudável com teste positivo, mas sem sinais, não costuma necessitar de tratamento. Nos casos de recidiva, talvez seja útil lavar o quarto traseiro do paciente; também é importante limpar e desinfetar o ambiente, bem como vasilhas de água e alimentos, além de evitar que os cães bebam água de superfície ou ingiram fezes. O risco de transmissão da giárdia de cães para humanos é, no entanto, muito baixo.

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Rolf R. Nijsse

Rolf R. Nijsse

Depois de se formar em 1996, o Dr. Nijsse passou vários anos trabalhando na clínica de pequenos animais e, em seguida, ministrou aulas para técnicos veterinários Leia mais

Paul A.M. Overgaauw

Paul A.M. Overgaauw

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por Linda Toresson

Número da edição 33.1 Publicado 20/11/2023

Insuficiência pancreática exócrina felina

A insuficiência pancreática exócrina felina é mais comum do que geralmente se imagina. Este artigo oferece dicas para um diagnóstico e tratamento bem-sucedidos da doença.

por Panagiotis G. Xenoulis