Revista médica e científica internacional dedicada a profissionais e estudantes de medicina veterinária.
Veterinary Focus

Número da edição 26.2 Outros conteúdos científicos

Otite crônica em cães – é melhor prevenir do que remediar

Publicado 12/07/2024

Escrito por Gustavo Machicote Goth

Disponível em Français , Deutsch , Italiano , Español e English

A otite é um problema comum em cães e pode rapidamente se tornar crônica se não forem seguidas medidas imediatas e adequadas para tratá-la. O presente artigo discute a melhor forma de abordar esses casos.

Otoscopia

Pontos-chave

Certos fatores primários em determinados cães podem afetar o canal auditivo e causar otite, como atopia, corpos estranhos no ouvido, reações adversas a alimentos, e parasitas.


Diversos fatores predisponentes podem contribuir para a cronicidade da otite, como características anatômicas específicas (morfologia e conformação), umidade excessiva (natação), e produção desproporcional (elevada) de cerúmen.


A investigação precoce e o tratamento adequado podem evitar que a otite aguda se converta em um problema recorrente ou de longo duração.


Em alguns casos, há necessidade de terapia de longo prazo ou intervenção cirúrgica para controlar a doença.


Introdução

Um transtorno pode ser descrito como “crônico” quando (i) o curso é prolongado, (ii) não é possível obter a cura definitiva ou (iii) a causa subjacente persiste.. Qualquer uma dessas definições pode se aplicar à otite 1 quando o tratamento foi ineficaz, seja por controle deficiente da causa primária da doença ou pela presença de um elemento perpetuante que não foi detectado ou devidamente resolvido 2. O objetivo desse artigo é compreender o motivo pelo qual o ouvido canino está predisposto à otite e o que pode ser feito para minimizar o risco de um problema otológico se tornar crônico.

Em primeiro lugar, cabe mencionar que a própria estrutura anatômica da orelha favorece a disbiose do microbioma, pois, além de lesões de intertrigo (inflamação causada pelo atrito ou fricção de uma área da pele sobre outra) se desenvolverem com facilidade, a conformação “antigravitacional” das orelhas dificulta a drenagem 3,4 (Figura 1). No entanto, nem todos os casos de otite levam necessariamente à disbiose e, em algumas situações, a produção abundante de cerúmen e o prurido podem causar otite. Além disso, pode ocorrer uma proliferação de agentes secundários (Figuras 2 e 3) como consequência de falhas na defesa natural dos canais auditivos e no controle do microbioma, conforme se pode observar em estudos citológicos 5,6; na verdade, a citologia deve ser realizada em todos os casos de otite, a fim de estabelecer um diagnóstico definitivo. Na Tabela 1, há alguns conselhos a esse respeito.

Otite purulenta com úlceras graves no canal auditivo

Figura 1. Otite purulenta com úlceras graves no canal auditivo.
© Gustavo Machicote Goth 

Citologia de cão com alergia crônica, revelando a presença de biofilme de Malassezia

Figura 2. Citologia de cão com alergia crônica, revelando a presença de biofilme de Malassezia (aumento de 40×).
© Gustavo Machicote Goth

Citologia com crescimento excessivo de cocos (cachorro)

Figura 3. Citologia de cão com otite crônica, mostrando um crescimento excessivo de cocos (aumento de 10×).

© Gustavo Machicote Goth 

Tabela 1. Algumas dicas para interpretação citológica a partir de esfregaços de ouvido.

  • A Malassezia costuma aparecer na ausência de células inflamatórias (Figura 2).
  • Os cocos geralmente induzem uma resposta inflamatória neutrofílica, embora em alguns casos possam aparecer rodeados por uma matriz ceruminosa (Figura 3).
  • Pseudomonas e Proteus spp. normalmente induzem uma resposta inflamatória neutrofílica grave.
  • É possível observar Corynebacterium spp., juntamente com outras bactérias ou como uma população bacteriana isolada. Contudo, como bacilos, eles são menos patogênicos que Pseudomonas ou Proteus spp., e são mais fáceis de tratar com agentes tópicos tradicionais.

 

 

O que pode causar uma otite aguda ou crônica?

Os erros mais comuns que são cometidos por médicos-veterinários e podem levar à cronicidade do quadro de otite incluem:

  • Suspender o tratamento com base apenas na melhora clínica, sem confirmação citológica.
  • Usar antibióticos de forma aleatória, sem antes fazer cultura e antibiograma.
  • Não realizar uma limpeza otológica completa e minuciosa, apesar do tratamento antibiótico adequado.
  • Deixar de tratar de forma proativa a causa primária da otite, facilitando assim a recorrência.
  • Estar limitado em relação às opções terapêuticas por questões econômicas ou logísticas (ou seja, custo ou duração do tratamento).

Portanto, é muito importante considerar as causas subjacentes da alteração na homeostase do ouvido que podem dar origem à inflamação aguda; se tais causas não forem controladas de forma eficaz, elas podem resultar em alterações estruturais no canal auditivo externo e/ou na orelha média, fazendo com que o problema persista ao longo do tempo 2. Todos os estudos sobre otite canina mencionam determinados fatores inerentes aos pacientes afetados que os predispõem a essa afecção. Esses fatores ou causas primárias são frequentes na população canina e favorecem o desenvolvimento de otites 7. Entre eles se incluem (em ordem decrescente de frequência):

  • Dermatite atópica
  • Corpos estranhos (fragmentos de gramíneas ou otólitos ceruminosos)
  • Reações adversas a alimentos
  • Infestação por Otodectes cynotis (ácaros da orelha)
  • Pólipos e tumores do canal auditivo externo
  • Reações adversas a produtos otológicos tópicos
  • Endocrinopatias
  • Distúrbios seborreicos primários
  • Mudanças transitórias no ecossistema (por cuidados inadequados)
  • Demodicose no canal auditivo (ou outros parasitas menos frequentes)
  • Dermatofitose no canal auditivo

Além dessas causas primárias, a presença de fatores predisponentes pode contribuir para a cronicidade do problema, pois favorecem a recorrência e dificultam o tratamento, tornando-o menos eficaz. Tais fatores incluem:

  • Banhos ou natação frequente
  • Conformação do canal auditivo: estreito, largo, profundo e/ou hirsuto (peludo)
  • Produção excessiva de cerúmen por causas idiopáticas
  • Orelhas externas/pavilhões auriculares pendentes (caídos)

Quando se desenvolve uma otite, ocorre uma mudança nas condições do microambiente do ouvido como consequência da maior produção de cerúmen e do estreitamento do canal auditivo por conta do processo inflamatório. Isso leva inevitavelmente à alteração da migração epitelial, resultando em disbiose do microbioma. Se a situação não for resolvida rapidamente, essas alterações podem persistir, fazendo com que a otite se torne crônica (Figura 4).

Pinna com otite purulenta crônica

Figura 4. Otite purulenta crônica com hiperplasia polipoide do pavilhão auricular.

© Gustavo Machicote Goth 

A maioria dos casos de otite tem sua origem nas causas primárias mencionadas anteriormente, e a falha na resolução dessas causas pode dar origem a circunstâncias que levam à persistência do problema 8. Isso pode incluir:

  • Potencialização de cepas bacterianas resistentes geradas por tratamento inadequado.
  • Ruptura do tímpano atribuída a enzimas secretadas por bactérias invasivas.
  • Perpetuação da infecção por otite média não resolvida. 
  • Hiperplasia, fibrose, estreitamento e calcificação do canal auditivo ao longo do tempo (Figura 5).
  • Acúmulo de cerúmen (otólitos) que obstruem a migração epitelial e sequestram bactérias.
  • A organização de microrganismos em biofilmes resistentes ao tratamento.
  • Limpeza excessiva ou substâncias irritantes nos ouvidos, o que pode favorecer a inflamação.
Otite crônica com estenose grave do canal auditivo

Figura 5. Hiperplasia da orelha externa com estenose grave do canal, secundárias a otite crônica.
© Gustavo Machicote Goth

Como evitar a cronificação de uma otite aguda

Causas primárias

A identificação da causa primária é útil na escolha do tratamento mais adequado.

  • Dermatite atópica: Sabe-se que essa afecção provoca um desequilíbrio no microambiente do ouvido. O cerúmen dos cães atópicos pode não ser capaz de controlar o microbioma, não só em virtude de sua produção excessiva secundária à inflamação, mas também por sua quantidade deficiente em defensinas (peptídeos de defesa do hospedeiro). Portanto, para evitar a recorrência de otite ceruminosa com ou sem disbiose, é crucial prevenir o reaparecimento de surtos de dermatite atópica, capazes de alterar o microambiente do ouvido. Embora cada animal exija uma estratégia personalizada, é recomendável a tomada de medidas proativas com medicação sistêmica como: (a) injeções mensais de lokivetmabe, (b) comprimidos diários de oclacitinibe ou ciclosporina em doses de manutenção, (c) corticosteroides em dosagem de pulso (p. ex., duas vezes por semana), ou azóis antifúngicos (novamente como terapia pulsada). Em alguns casos, o tratamento tópico também pode ser uma opção adequada; estes incluem produtos com corticosteroides, agentes antissépticos, azóis antifúngicos, ou agentes ceruminolíticos para manter o canal auditivo limpo. Todos eles são administrados uma ou duas vezes por semana. Os corticosteroides tópicos podem controlar a inflamação e os efeitos tóxicos negativos do excesso de cerúmen, permitindo que o microbioma exerça corretamente sua função protetora; em muitos casos, a disbiose pode ser controlada sem o uso de antissépticos ou antibióticos.
  • Corpos estranhos: A experiência clínica mostra que, em alguns casos de otite, corpos estranhos ou otólitos podem permanecer alojados nas orelhas por um longo período de tempo sem ser detectados até o momento da realização de otoscopia sob sedação ou anestesia geral. Portanto, é altamente recomendável realizar uma avaliação completa e minuciosa da orelha para descartar uma possível obstrução do canal auditivo ou detectar uma quantidade excessiva de cerúmen pós-inflamatório.
  • Reações adversas a alimentos: Os alérgenos alimentares podem estar envolvidos na origem ou na perpetuação de uma otite; por isso, se tais casos não forem identificados, o processo se tornará crônico. Durante o procedimento diagnóstico de uma otite recorrente, deve-se considerar essa possibilidade e utilizar uma dieta de eliminação.
  • Ácaros otológicos: Nos últimos anos, graças à introdução de lactonas macrocíclicas e isoxazolinas como agentes antiparasitários externos (i. e., contra ectoparasitas) de rotina, os casos de otoacaríase são pouco frequentes. Não obstante, o diagnóstico é relativamente simples e formulado com base principalmente no tipo de cerúmen produzido.
  • Pólipos e tumores: Os pólipos costumam se desenvolver como consequência de irritação crônica, e vários tumores diferentes podem ser encontrados no canal auditivo. Qualquer crescimento dificulta a migração epitelial e favorece a disbiose crônica. Quando envolvem a orelha média, essas lesões podem ser mais difíceis de diagnosticar e contribuir para a inflamação contínua ou a infecção crônica nessa área do corpo. 
  • Reações adversas a produtos tópicos: A piora dos sinais de otite após tratamento tópico pode ser indicativa de reação adversa de contato ao fármaco utilizado. Normalmente, essas reações aparecem logo após a aplicação do produto, com o desenvolvimento de eritema e exsudação graves, sobretudo na entrada do canal auditivo. 
  • Endocrinopatia: Anormalidades hormonais, especialmente hipotireoidismo, mas também hiperadrenocorticismo ou distúrbios dos hormônios sexuais, podem afetar adversamente a secreção de cerúmen e favorecer a disbiose, com o subsequente desenvolvimento de graus variados de otite. 
  • Distúrbios seborreicos primários: São mais comuns em algumas raças de cães e podem alterar o ecossistema auditivo por mudanças na qualidade e quantidade de cerúmen (Figura 6).
  • TMudanças transitórias no ecossistema: Em pacientes suscetíveis à otite pela presença de uma ou mais causas primárias, a limpeza ou os cuidados estéticos inadequados podem atuar como um gatilho ou fator desencadeante para induzir ou perpetuar a otite. Por exemplo, o ato de arrancar pelos intra-auriculares, a aplicação excessiva de ceruminolíticos ou produtos muito irritantes, a utilização de cotonetes podem promover o desequilíbrio do ecossistema 8.
  • Demodicose ótica: Tal como acontece com a infecção por Otodectes, graças à introdução de novos antiparasitários, a demodicose ótica é pouco frequente. No entanto, a presença de ácaros Demodex na orelha externa deve ser considerada e sempre será uma possibilidade em cães tratados com outras substâncias antiparasitárias que não as lactonas macrocíclicas ou isoxazolinas.
Figura 6. Otite em cão da raça Cocker Spaniel, secundária a seborreia grave

Figura 6. Otite em cão da raça Cocker Spaniel, secundária a seborreia grave.
© Gustavo Machicote Goth 

Fatores predisponentes

Quando se trata de fatores predisponentes, certas medidas podem ser tomadas para evitar que a otite se torne crônica 9. Alguns desses fatores são:

  • Natação frequente: Evitar esse hábito por completo pode ser uma boa opção; entretanto, se isso não for possível, podem ser aplicados antissépticos tópicos ou acidificantes de pH na orelha do cão assim que ele sair da água, o que ajudará a neutralizar o desenvolvimento da disbiose. 
  • Conformação anatômica: Certas raças têm características anatômicas que predispõem à otite; o Shar Pei é uma das raças caninas afetadas com maior frequência. A experiência clínica mostra que, se nenhuma intervenção for necessária, é preferível não utilizar produtos para limpara as orelhas. Nos casos em que uma causa anatômica primária produz uma inflamação aguda, pode ser difícil manter o canal auditivo limpo e, em muitas situações, será necessária a aplicação de corticosteroides tópicos e agentes ceruminolíticos regularmente. 
  • Canais auditivos hirsutos (peludos): Novamente, isso muitas vezes se trata de um problema específico de determinadas raças – como no Bichon Frisé. Na otoscopia, pode-se observar a presença de pelos que se estendem até a periferia da membrana timpânica. Nesses cães, embora a manutenção do canal auditivo limpo possa exigir a remoção dos pelos quando uma causa primária estiver presente, pode ser melhor evitar essa prática para prevenir microtraumatismos foliculares.
  • Canais auditivos estreitos, longos ou profundos: Esta é uma das principais causas que contribui para a complicação da otite e, mais uma vez, pode ser específica de cada raça (como Pastor Alemão); por exemplo, um canal auditivo longo aumenta o acúmulo de detritos e torna mais difícil sua remoção. 
  • Produção excessiva de cerúmen: Em algumas raças ou animais específicos, o excesso de cerúmen pode estar diretamente relacionado com seborreia generalizada, e nem sempre é fácil determinar a causa. Esses pacientes necessitam da aplicação regular de agentes ceruminolíticos e corticosteroides tópicos para reduzir a quantidade de cerúmen produzido. 
  • Orelhas externas pendentes (caídas): Os pavilhões auriculares que cobrem o acesso ao canal auditivo podem não só complicar o tratamento, mas também dificultar a ventilação das orelhas úmidas e a eliminação de detritos do seu interior.
Gustavo Machicote Goth

Quando se desenvolve uma otite, ocorre uma mudança nas condições do microambiente do ouvido. Isso leva inevitavelmente à alteração da migração epitelial, o que provoca uma disbiose do microbioma. Se a situação não for resolvida rapidamente, essas alterações podem persistir, fazendo com que a otite se torne crônica.

Gustavo Machicote Goth

Fatores perpetuantes

As recomendações feitas anteriormente podem ajudar a evitar que uma otite se desenvolva, se repita ou se cronifique. Contudo, é importante levar em conta que, em alguns casos, não se consegue evitar a recorrência em virtude da existência de fatores perpetuantes. Os três principais fatores perpetuantes são: a formação de biofilme, a presença de otite média, e o processo de estreitamento, fibrose e calcificação do canal auditivo externo.

  • Formação de biofilme

Tanto as leveduras como algumas cepas bacterianas (principalmente Pseudomonas spp.) podem se organizar em uma matriz, juntamente com glicoproteínas e canais de distribuição (i. e., que distribuem água e oxigênio), formando biofilmes. Esses biofilmes, por sua vez, são resistentes aos procedimentos tradicionais de limpeza e ao uso de antibióticos e, portanto, contribuem para a persistência da otite  (Figura 7). Sabe-se que a bactéria Finegoldia magna no canal auditivo externo é um patógeno anaeróbio oportunista que facilita a formação de biofilme de Pseudomonas 10. Nem sempre é fácil identificar o biofilme, embora existam algumas características sugestivas de sua presença, como secreção mucoide escura, pegajosa e brilhante que não responde bem ao tratamento. Embora o biofilme possa ser reduzido com medicação, o crescimento excessivo de microrganismos nunca é totalmente controlado.

A N-acetilcisteína e o Tris-EDTA podem servir para romper o biofilme, atuando principalmente sobre as ligações dissulfeto ou enxofre responsáveis por sua estabilização. Se o tímpano estiver intacto, também podem ser utilizados líquidos com potente ação de limpeza, como o peróxido de carbamida. De acordo com alguns estudos, agentes de limpeza enzimáticos, como lactoferrina, lactoperoxidase e lisozima, podem ser eficazes em casos de otites com cepas resistentes. A solução de Burow modificada (à base de acetato de alumínio a 2% e betametasona a 0,1%) pode ser indicada em casos de otite média com infecção por cepas multirresistentes 11. Também se pode considerar a opção de vídeo-otoscopia sob anestesia geral, utilizando uma escova rotativa com bomba de sucção e instilação de solução salina 12.

Citologia de um cão mostrando biofilme de cocos e bacilos

Figura 7. Citologia de cão com otite grave, exibindo um biofilme de cocos e bacilos (aumento de 10×).
© Gustavo Machicote Goth 

  • Otite média

Os problemas na orelha média são uma complicação comum da otite crônica, principalmente na presença de bactérias gram-negativas, como Pseudomonas spp. 13. As enzimas proteolíticas liberadas por essas bactérias podem romper o tímpano, disseminando a infecção e os produtos inflamatórios para a orelha média. Nesse local, também pode ocorrer a formação de biofilme – que, às vezes, afeta a bula timpânica e complica consideravelmente o prognóstico 1,14. A avaliação citológica é fundamental em todos os pacientes com otite média, e a diferenciação entre cocos e bacilos pode nortear os passos a serem tomados 15,16. É muito importante levar em conta que, em cães com alergia, o crescimento excessivo de Malassezia pode perpetuar a cronicidade e, em alguns casos, pode vir a ser muito difícil de tratar, em parte porque também pode haver a formação de biofilme 1,14,15,16. Além disso, embora a cultura e o antibiograma sejam essenciais nessas circunstâncias, às vezes não existe uma relação direta entre os resultados in vitro e in vivo desses testes 1,5,9,10. A experiência mostra que as quinolonas são os antibióticos mais seguros para uso nos casos em que há ruptura da membrana timpânica e, em geral, elas costumam ter um amplo espectro de ação. A aplicação matinal (i. e., pela manhã) de uma solução de limpeza composta por Tris-EDTA e/ou N-acetilcisteína costuma ser o método preferido para eliminar os detritos inflamatórios, romper o biofilme e sensibilizar as bactérias aos antibióticos que serão administrados posteriormente.

Pode-se suspeitar de otite média com ruptura da membrana timpânica se os sinais a seguir forem observados:

  • Tossir ou engolir na hora da lavagem otológica.
  • Dor ao pressionar a garganta perto da bula timpânica.
  • Formação de bolhas ao lavar e irrigar a orelha externa.
  • Penetração mais profunda com a introdução de sonda, ao comparar a orelha com tímpano rompido e a orelha saudável.
  • Presença de sinais neurológicos (Figura 8).
  • Otite irresponsiva ao tratamento, exibindo alguma opacificação do lúmen da bula timpânica ou espessamento da parede dessa bula à radiografia.

Todavia, as melhores imagens diagnósticas podem ser obtidas por meio de ressonância magnética ou tomografia computadorizada 17

Síndrome de Horner em cão

Figura 8. Síndrome de Horner em cão, causada por otite média. 
© Gustavo Machicote Goth 

  • Alterações no canal auditivo

A inflamação crônica do canal auditivo externo, incluindo a derme e a cartilagem da orelha externa, provoca fibrose dos tecidos, com o acúmulo de sais de cálcio. Esses sais, por sua vez, dão origem a uma estrutura rígida e irreversível. Nos estágios iniciais ou antes do acúmulo de cálcio, quando o estreitamento do canal se deve principalmente ao edema da camada subdérmica, pode-se lançar mão de corticosteroides sistêmicos em doses imunossupressoras por 15 dias na tentativa de reverter a estenose e restaurar a migração epitelial 14. Além disso, a aplicação tópica de creme ou loção de mometasona a 0,1% pode ajudar a abrir o canal auditivo externo.

Manejo de pacientes propensos a recaídas

Existem situações em que o equilíbrio do ecossistema auricular fica muito sensível à recidiva ou as alterações estruturais são tão graves que a migração epitelial não pode ser restaurada; nesses casos, as opções para evitar a cirurgia de ablação são mínimas. Algumas circunstâncias em que a terapia pulsada é inevitável incluem:

  • Na citologia, observa-se de forma persistente um crescimento excessivo de microrganismos, com cerúmen e queratinócitos abundantes.
  • O lúmen do canal auditivo permanece estreito, e a limpeza não pode ser realizada facilmente.
  • A membrana timpânica não cicatriza, e a citologia da orelha média continua a mostrar a presença de microrganismos, embora não sejam observadas células inflamatórias.

Os tratamentos pulsados geralmente envolvem agentes ceruminolíticos eficazes, combinados com medicamentos antifúngicos e antissépticos para controlar o crescimento excessivo e prevenir a proliferação de microrganismos. Em alguns casos, os corticosteroides (p. ex., aceponato de hidrocortisona) podem ser úteis, sendo uma boa forma para evitar a produção demasiada de cerúmen e garantir níveis reduzidos de inflamação 18. Em alguns pacientes com otite crônica que são tratados de forma abusiva com antibióticos e acabam sofrendo a invasão de microrganismos fúngicos como Aspergillus spp., o tratamento pode ser complicado. Esses casos são caracterizados por lesões ulcerativas e outros sinais graves, exigindo uma limpeza cuidadosa e minuciosa, além de terapia intensiva com antifúngicos como azóis, por via tópica e sistêmica 14 (Figuras 9 e 10).

Otoscopia exibindo uma otite atribuída à infecção por aspergilose

Figura 9. Otoscopia exibindo uma otite atribuída à infecção por aspergilose.
© Gustavo Machicote Goth 

Citologia revelando esporos de aspergilose (cão)

Figura 10. Citologia do cão da Figura 9, revelando a presença de esporos de Aspergillus (aumento de 10×).
© Gustavo Machicote Goth 

Em outros casos, a cura não é possível por conta de situações terminais, como biofilmes persistentes e perpétuos, irresponsivos ao tratamento (Figuras 11-13), ou quando a estenose do canal auditivo é tão grave a ponto de a medicação anti-inflamatória se mostrar ineficaz. Quando a migração epitelial não pode ser restabelecida por alterações estruturais irreversíveis, a única opção possível para evitar recidivas pode ser a exposição cirúrgica do canal auditivo externo por meio de ablação e curetagem da bula timpânica (Figura 14, Tabela 2). Entretanto, a cirurgia nem sempre é uma solução definitiva, pois, em alguns casos, as causas primárias continuam a agir em pequenas áreas do epitélio do canal residual. Os tutores devem compreender que a intervenção cirúrgica sempre deve ser a última opção, e o clínico precisa ter a consciência de que essa medida pode ser interpretada como uma falha no tratamento médico previamente prescrito.

Cão com otite: citologia demonstrando bacilos e neutrófilos degenerados

Figura 11. Citologia de cão com otite, demonstrando bacilos e neutrófilos degenerados (aumento de 40×).
© Gustavo Machicote Goth 

cão com otite, mostrando a presença de bacilos

Figura 12. Citologia de cão com otite, mostrando a presença de bacilos (aumento de 10×).
© Gustavo Machicote Goth 

Citologia de um cão com otite purulenta crônica

Figura 13. Citologia de cão com otite crônica purulenta grave de difícil resolução (aumento de 10×).
© Gustavo Machicote Goth 

Exposição da bula timpânica para curetagem: imagem intraoperatória

Figura 14. Imagem intraoperatória, revelando a exposição da bula timpânica para curetagem.
© Gustavo Machicote Goth 

Tabela 2. Opções cirúrgicas para otite externa crônica (1,14,19,20).

Ressecção da parede lateral em:

  • Casos de má ventilação causada por:
  • Orelhas externas pendentes (caídas)
  • Canais auditivos estreitos (estenose)
  • Canais auditivos hirsutos (peludos)
  • Otite seborreica sem controle médico
  • Hiperplasia das glândulas ceruminosas no canal vertical
  • Fibrose do canal vertical por falta de resposta ao tratamento
  • Neoplasia do canal vertical

Ablação total do canal auditivo e osteotomia da bula timpânica em:

  • Otite média persistente ou refratária
  • Osteomielite da bula timpânica
  • Fibrose do canal horizontal
  • Calcificação do canal horizontal
  • Neoplasia do canal horizontal ou da bula timpânica

 

Considerações finais 

Sempre é melhor prevenir do que remediar, e isso é particularmente verdadeiro nos casos de otite. O médico-veterinário deve conhecer as principais causas de otite e ser capaz de identificar os cães com maior risco pela presença de fatores predisponentes. O tratamento adequado e rigoroso, associado à avaliação citológica minuciosa, deve ajudar a minimizar as chances de uma otite aguda se tornar crônica e possivelmente irreversível.

Referências

  1. Hill, P. Management of chronic infection. In; Proceedings, WCVD Congress. Sydney 2020.

  2. Griffin CE. Otitis techniques to improve practice. Clin. Tech. Small Anim. Pract. 2006;21(3):96-105.

  3. Getty R. Anatomy of the canine. In: Sisson and Grossman’s Anatomy of Domestic Animals. Philadelphia, WB Saunders. 1996;1214-1245.

  4. Blauch B, Strafuss AC. Histologic relationship of the facial (7th) and vestibulocochlear (8th) cranial nerves within the petrous temporal bone in the dog. Am. J. Vet. Res. 1974;35:481.

  5. Ngo J. Taminiau B. Fall PA, et al. Ear canal microbiota – a comparison between healthy dogs and atopic dogs without clinical signs of otitis externa. Vet. Dermatol. 2018;29:425-e140.

  6. Boynosky NA, Stokking LB. Retrospective evaluation of canine dermatitis secondary to Corynebacterium spp. J. Am. Anim. Hosp. Assoc. 2015;51(6):372-379.

  7. Gotthelf NL. Enfermedades del oído. In; Animales de Compañía. Buenos Aires; Intermédica. 2001;26-32.

  8. Carlotti DN. Diagnosis and medical treatment of otitis externa in dogs and cats. J. Small Anim. Pract. 1991;32(8):394-400.

  9. Bajwa J. Canine otitis externa: treatment and complications. Can. Vet. J. 2019;60(1):97-99.

  10. Apostolopoulos, N. The Canine Skin and Ear Bacterial Microbiota. Today’s Vet Pract. May/June 2023.

  11. Zalke A. Clinical efficacy of Neo Burow’s solution in six dogs with suppurative otitis media. In; Proceedings, WCVD Congress Sidney 2020.

  12. Noxon J. Canine Otitis Externa – Best Clinical Practices: Clinical Consensus Guidelines of the World Association for Veterinary Dermatology. In; Proceedings, ESVD Congress Porto 2021.

  13. Shell LG. Otitis media and otitis interna: Etiology, diagnosis, and medical management. Vet. Clin. North Am. Small Anim. Pract. 1988;18(4):885-899.

  14. Miller Jr. WH, Griffin CE, Campbell KL. Miscellaneous skin diseases. In Muller and Kirk’s Small Animal Dermatology 7th ed. Missouri: Elsevier Mosby, 2013;708-709.

  15. Lipscomb H, de Bellis F. A diagnostic approach to canine otitis. Vet. Focus 2021;32(1).

  16. Angus JC. Otic cytology in health and disease. Vet. Clin. North Am. Small Anim. Pract. 2004;34:411-424.

  17. Sturges BK, Dickinson PJ, Kortz GD, et al. Clinical signs, magnetic resonance imaging features and outcome after surgical and medical treatment of otogenic intracranial infection in 11 cats and 4 dogs. J. Vet. Intern. Med. 2006;20:648-656.

  18. Niza Virbac Otology Meeting 2023. 

  19. Lanz OI, Wood BC. Surgery of the ear and pinna. Vet. Clin. Small Anim. Pract. 2004;34(2):567-599.

  20. Radlinsky MG, Masan DE. Enfermedades del oído. In; Tratado de medicina interna veterinaria. Enfermedades del perro y el gato. Ettinger SJ, Feldman EC (eds). Madrid; Elsevier España S.A.;2007;1168-1186.

Gustavo Machicote Goth

Gustavo Machicote Goth

O Dr. Machicote Goth se formou pela Universidade de Buenos Aires Leia mais

Outros artigos nesta edição

Número da edição 26.2 Publicado 30/09/2024

Erros comuns e dicas para melhorar a comunicação na equipe

Neste artigo, a autora nos explica – que trabalha como médica-veterinária e consultora de segurança sanitária – como podemos melhorar a comunicação durante as consultas em benefício dos nossos pacientes.

por Leïla Assaghir

Número da edição 26.2 Publicado 10/07/2024

Aplicação da biomodulação por fluorescência em doenças cutâneas

A preocupação com o aumento da resistência bacteriana aos antibióticos levou os clínicos a procurar novas alternativas para doenças de pele como a piodermite. O presente artigo analisa as possibilidades de um desses tratamentos, a saber: a fotobiomodulação.

por Neoklis Apostolopoulos

Número da edição 26.2 Publicado 28/05/2024

Piodermite no cão: uma abordagem gradual

Nosso conhecimento a respeito de piodermite canina segue avançando. O presente artigo descreve como devemos abordar esses casos, considerando o que sabemos atualmente.

por Jason B. Pieper

Número da edição 26.2 Publicado 27/05/2024

Prurido no cão: causas e tratamentos

Entender o que faz um animal se coçar é o primeiro passo para o sucesso do tratamento do cão com prurido, conforme descrito neste artigo.

por Frédéric Sauvé