Revista médica e científica internacional dedicada a profissionais e estudantes de medicina veterinária.
Veterinary Focus

Número da edição 33.1 Sistema Gastrointestinal

Tratamento de constipação em gatos

Publicado 30/10/2023

Escrito por Jonathan A. Lidbury

Disponível em Français , Deutsch , Italiano , Română , Español , English e 한국어

O gato constipado é uma simples “consulta de 10 minutos”? Muito pelo contrário, diz Jonathan Lidbury, apresentando uma abordagem estruturada e cuidadosa para todos esses casos.

Radiografia abdominal lateral

Pontos-chave

A constipação é comum na espécie felina, especialmente em gatos mais idosos, obesos ou naqueles acometidos por doença renal crônica; sempre que possível, é importante identificar e tratar a(s) causa(s) subjacente(s) da constipação.


A nutrição é uma parte importante do manejo de gatos constipados, e diferentes tipos de fibras dietéticas podem ser benéficas.


O polietilenoglicol 3350 é um laxante palatável, bem tolerado e eficaz em gatos.


A realização de colectomia subtotal para o tratamento de casos refratários de constipação está associada a longos períodos de sobrevida e a uma alta taxa de satisfação do tutor.


Introdução

Além de ser um problema comumente encontrado na clínica felina, a “constipação” pode levar a morbidade significativa e, inclusive, ser a razão pela qual alguns tutores optam pela eutanásia de seu pet, mas em primeiro lugar é importante usar as definições relevantes corretas (Quadro 1) para ajudar na discussão e no tratamento precisos dos casos. Existem muitas causas de constipação em gatos, sendo o megacólon idiopático a mais comum 1 e, portanto, os clínicos precisam ser capazes de identificar a etiologia, a fim de iniciar um plano terapêutico personalizado para o paciente.

Quadro 1. Definições 1.

Constipação evacuação pouco frequente ou difícil de fezes (no entanto, isso não significa necessariamente que haja uma perda permanente de função)
Obstipação constipação intratável que se tornou refratária ao tratamento (associada à perda permanente da função)
Megacólon dilatação anormal do cólon
Megacólon dilatado desenvolve-se como um estágio final de megacólon idiopático e implica a perda permanente da função colônica e alterações na estrutura
Megacólon hipertrófico desenvolve-se como consequência de lesões obstrutivas e pode ser reversível se a obstrução for aliviada a tempo (mas pode evoluir para megacólon dilatado)

Nota: essas distinções têm implicações importantes para o tratamento e prognóstico do paciente.

 

Etiopatogênese

As causas da constipação podem ser classificadas de forma mecânica (ver Quadro 2), embora tenha em mente que, em qualquer gato, alguns dos mecanismos listados podem contribuir simultaneamente para o problema. Por exemplo, um gato com constipação causada por megacólon idiopático pode parar de comer e beber e, consequentemente, ficar desidratado e hipocalêmico, agravando a constipação. Embora existam muitas causas potenciais, uma revisão de casos publicados constatou que 62% dos gatos com obstipação tinham megacólon idiopático, 23% sofriam de estenose do canal pélvico, 6% apresentavam lesão de nervo(s) e 5% exibiam deformidade sacral da medula espinal do gato Manx 1. Em um estudo retrospectivo recente, gatos com idade mais avançada, sobrepeso, doença renal crônica e histórico prévio de constipação eram mais propensos a entrar em uma sala de emergência por causa desse estado constipado 2.

Por definição, a etiopatogenia do megacólon idiopático em gatos não é totalmente compreendida. Experimentos ex vivo realizados com o uso de tecido colônico coletado de gatos constipados demonstraram disfunção generalizada do músculo liso do cólon, embora não se saiba se esta foi a causa inicial da constipação ou um efeito secundário 3. Além disso, a avaliação histopatológica do tecido afetado não revelou nenhuma anormalidade da musculatura lisa (longitudinal ou circular) ou do plexo mioentérico.

Quadro 2. Causas de constipação em gatos 1.

Obstrução física (cólon, reto ou ânus)
  • luminal (por exemplo, corpos estranhos)
  • intramural (por exemplo, massas da parede do cólon)
  • extraluminal (por exemplo, fraturas pélvicas deslocadas, massas de outros órgãos abdominais)
Disfunção neuromuscular
  • distúrbios do músculo liso colônico (por exemplo, megacólon idiopático)
  • mielopatias (por exemplo, síndrome da cauda equina, deformidades sacrais da medula espinal [gatos Manx], doença lombossacral)
  • distúrbios do nervo hipogástrico ou de nervos periféricos (por exemplo, traumatismo, neoplasia, disautonomia)
  • doenças da submucosa ou no plexo mioentérico (por exemplo, disautonomia)
Doença sistêmica/metabólica
  • desidratação, doença renal crônica, hipocalemia, hipercalcemia
Endocrinopatia
  • hipotireoidismo (espontâneo ou iatrogênico), hiperparatireoidismo nutricional
Dor ao defecar
  • saculite anal/abscesso dos sacos anais, proctite, feridas por mordeduras, doença articular degenerativa
Causa farmacológica
  • p. ex., opiáceos, antagonistas colinérgicos, diuréticos
Origem ambiental e comportamental
  • bandejas sanitárias sujas, interações sociais, inatividade, hospitalização, mudanças no ambiente

 

Características clínicas

A identificação de gatos constipados é muito variável, pois animais de qualquer sexo e qualquer idade ou raça podem desenvolver esse problema. Em uma revisão de casos publicados, foi relatada uma idade média de 5,8 anos, e 70% dos gatos eram machos (embora esse viés de gênero não tenha sido observado na própria experiência do autor); além disso, as raças comumente relatadas incluíam Gato Doméstico de Pelo Curto (46% ), Gato Doméstico de Pelo Longo (15%) e Siamês (12%) 1.

Frequentemente, observa-se que os gatos afetados fazem várias tentativas malsucedidas de defecar (Figura 1) e podem vocalizar ao fazer isso. Às vezes, eles podem eliminar pequenas quantidades de fezes muito firmes, produzir pequenas quantidades de fezes líquidas ou apresentar hematoquezia 1. Os dois últimos cenários podem levar o tutor a acreditar que o principal problema do seu gato é a diarreia. A constipação também deve ser diferenciada de doença do trato urinário inferior, colite e doença dos sacos anais, todos dos quais podem levar a aparente tenesmo e aumento do uso das bandejas sanitárias. Por outro lado, qualquer um dos sinais acima de constipação pode passar facilmente despercebido em residências com vários gatos; por isso, é importante ter muito cuidado ao definir os problemas do paciente. Com a cronicidade, podem ocorrer vômitos, anorexia ou letargia e, se a constipação fizer parte de um processo patológico multissistêmico (por exemplo, disautonomia), outros sinais sistêmicos podem estar presentes. O tutor também deve ser cuidadosamente questionado a respeito de quaisquer medicamentos/terapias que o gato tenha recebido, pois alguns fármacos podem levar a hipomotilidade colônica, desidratação, ou hipotireoidismo iatrogênico (Quadro 2), bem como sobre quaisquer mudanças ambientais ou comportamentais recentes.

De modo geral, é possível fazer a palpação transabdominal de fezes impactadas dentro do cólon de gatos constipados, mas isso pode ser um grande desafio em pacientes gravemente obesos ou inquietos. Os gatos acometidos também podem apresentar sinais de náusea ou desidratação. Um exame neurológico, incluindo palpação da coluna vertebral, e um exame oftalmológico devem ser realizados para determinar se a constipação faz parte de um distúrbio neuromuscular mais disseminado (por exemplo, disautonomia, mielopatia). A realização de um exame retal minucioso sob sedação ou anestesia pode revelar a presença de fezes impactadas, massas retais, corpos estranhos, fraturas pélvicas deslocadas, estenoses retais, ou doença dos sacos anais. Ocasionalmente, os gatos podem desenvolver hérnia perineal como resultado de tenesmo fecal prolongado.

Um gato constipado

Figura 1. Um gato constipado pode ser visto fazendo visitas repetidas à bandeja sanitária, com tentativas prolongadas de evacuar as fezes.
© Shutterstock

Testes de diagnóstico

É recomendável a obtenção de hemograma completo, perfil bioquímico e urinálise em gatos com constipação recorrente ou grave. Embora esses exames não costumem levar à identificação de uma causa subjacente, eles ocasionalmente podem fazer isso (por exemplo, hipocalemia, hipercalcemia, desidratação, azotemia renal, ou alterações sugestivas de hipotireoidismo). Se o status de FeLV/FIV do gato ainda não for conhecido, ele deverá ser determinado.

Radiografias abdominais devem ser realizadas em todos os gatos constipados. Essa modalidade de diagnóstico por imagem permite a detecção de fezes impactadas e a avaliação da gravidade da compactação (Figura 2). Também se pode observar a presença de obstrução colônica luminal (por exemplo, corpo estranho radiopaco) e extraluminal (por exemplo, estenose do canal pélvico atribuída a alguma fratura deslocada [Figura 3]). Além disso, pode haver lesões evidentes da medula espinal (por exemplo, fraturas ou tumores). Pesquisas demonstraram que a relação entre o diâmetro máximo do cólon e o comprimento do corpo vertebral da L5 pode ajudar a diferenciar os quadros de constipação e megacólon; uma razão < 1,28 indica a normalidade do cólon, enquanto um valor > 1,48 aponta a presença de megacólon (sensibilidade de 77%, especificidade de 85%) 4. A repetição de radiografias abdominais pós-tratamento também permite que o clínico avalie a resposta do paciente.

Radiografia abdominal lateral de gato constipado

Figura 2. Radiografia abdominal lateral de gato constipado, com o cólon distendido por fezes ressecadas. A relação entre o diâmetro máximo do cólon e o comprimento do corpo vertebral da L5 é de 1,74 (> 1,48 indica megacólon).
© Dr. C. Ruoff, Texas A&M University

Avaliações adicionais poderão ser feitas, conforme a necessidade. O primeiro objetivo diagnóstico do clínico deve ser não só confirmar a existência de constipação, mas também determinar sua cronicidade e gravidade. Isso geralmente pode ser obtido por meio de exame físico e radiografia, conforme descrição prévia. Considerando que o megacólon de origem idiopática e a estenose do canal pélvico respondem por cerca de 85% dos casos 1, não é necessária a realização de testes de diagnóstico exaustivos  para a maioria dos gatos constipados; no entanto, é importante não negligenciar uma causa subjacente tratável em determinados pacientes. As possíveis indicações para testes de diagnóstico adicionais incluem déficits neurológicos (por exemplo, aqueles associados à disautonomia), massas abdominais ou anorretais palpáveis, anormalidades do abdômen/canal pélvico detectadas por meio radiográfico, nanismo desproporcional em gatos jovens (uma condição compatível com hipotireoidismo congênito), ou outros sinais de doença sistêmica. Os exemplos de testes adicionais que às vezes são necessários compreendem (a) provas de função da tireoide (ou seja, T4 total, T4 livre, mensuração do hormônio tireoestimulante) se o hipotireoidismo for uma possibilidade, (b) ultrassonografia abdominal na suspeita de massas colônicas murais ou extraluminais, (c) imagens transversais se doença vertebral ou massas intrapélvicas forem uma preocupação, ou (d) colonoscopia para pesquisar lesões inflamatórias, estenoses anorretais, ou divertículos.

Radiografia abdominal ventrodorsal

Figura 3. Radiografia abdominal ventrodorsal de gato constipado com fratura pélvica. Observe grande volume de material fecal opaco com densidade de tecidos moles heterogêneos, presença de gás em todo o cólon, e estreitamento moderado do canal pélvico, com fraturas aparentemente consolidadas do ílio esquerdo e do pécten (direito e esquerdo) do púbis.
© Dr. C. Ruoff, Texas A&M University

Tratamento de pacientes ambulatoriais

Nutrição

A princípio, alguns gatos levemente afetados podem ser tratados em um esquema ambulatorial apenas com modificações na dieta. A suplementação de fibras é uma estratégia nutricional comumente empregada em gatos constipados; para isso, existem vários tipos de fibras dietéticas e fontes de fibras, cada uma com diferentes benefícios potenciais. A suplementação de fibras mostrou ser benéfica em seres humanos adultos com constipação crônica 5, mas a suplementação com alguns tipos de fibras pode agravar a constipação. As fibras fermentadas por bactérias colônicas levam ao aumento na produção de ácidos graxos de cadeia curta, incluindo o butirato, que atua como uma fonte de energia para os colonócitos. Os ácidos graxos de cadeia curta também têm propriedades anti-inflamatórias e comprovadamente estimulam contrações longitudinais, mas não circulares, do cólon canino e felino 6,7. Fibras insolúveis e não fermentáveis são formadoras de volume e potencialmente melhoram a motilidade colônica ao promover a distensão de sua parede, estimulando assim a contração. Essas fibras têm a desvantagem potencial de reduzir a absorção de nutrientes e o teor de água nas fezes, e este último efeito pode levar a uma piora da impactação fecal, sobretudo em pacientes já desidratados e obstipados ou naqueles com megacólon. O psyllium, uma fibra solúvel, mas (principalmente) não fermentável, leva à formação de um gel (Figuras 4 e 5) que proporciona lubrificação e aumenta a frequência de defecação em seres humanos com constipação idiopática (doses de 10 g/dia e duração > 4 semanas parecem ideais em pacientes humanos) 5.

Suplemento de casca de psílio moída (i. e., em pó) aromatizado para seres humanos

Figura 4. Suplemento de casca de psyllium moída (i. e., em pó) aromatizado para seres humanos.
© Jonathan A. Lidbury

Em dois ensaios a campo, uma dieta extrusada seca de alta digestibilidade, com suplementação moderada de psyllium e disponível no mercado, mostrou-se palatável e permite a suspensão de outros medicamentos em gatos constipados 8. Note que nenhum dos ensaios era controlado e, portanto, não foi confirmado se a melhora observada se devia apenas à dieta. Logo, há necessidade de ensaios clínicos randomizados controlados no futuro. No entanto, a experiência anedótica (i. e., sem comprovação científica) com essa dieta não só é positiva, mas também constitui a escolha do autor para tratar a constipação em grande parte dos gatos. Outra opção é adicionar casca de psyllium sem sabor (aproximadamente 1-2 colheres das de chá/5-10 mL por refeição) ou outras fontes de fibras à dieta existente do gato, mas isso pode afetar a palatabilidade.

Uma estratégia nutricional alternativa é fornecer uma dieta intestinal de alta digestibilidade e com baixo teor de resíduos para reduzir o volume de material que chega ao cólon. Essa estratégia foi sugerida como particularmente benéfica em gatos com doença grave intolerantes a volume fecal extra. As dietas gastrointestinais também são frequentemente suplementadas com fibras fermentáveis.

Manter uma hidratação adequada é crucial para o sucesso do tratamento. Os gatos devem ter livre acesso à água (filtrada/engarrafada, se necessário) em vasilhas de formatos diferentes ou através de alguma fonte para ajudar a garantir essa hidratação; além disso, o fornecimento de dieta úmida também pode ser útil.

O psyllium em pó absorve água até formar um gel no trato gastrointestinal

Figura 5. O psyllium em pó absorve água até formar um gel no trato gastrointestinal. Vale ressaltar que os produtos não aromatizados (i. e., sem sabor) são preferidos para uso em gatos. Produtos que contenham xilitol são contraindicados.
© Jonathan A. Lidbury

Laxantes

Em gatos mais gravemente acometidos ou naqueles com episódios recorrentes de constipação, muitas vezes é necessária a instituição de terapia médica. Há uma grande variedade de diferentes classes de laxantes disponíveis (i.e., ou seja, agentes osmóticos, substâncias formadoras de volume, emolientes [amolecedores] fecais, ou agentes estimulantes da motilidade [procinéticos]). Contudo, o autor restringe o uso de laxantes em gatos aos dois agentes osmóticos discutidos a seguir.

O laxante osmótico polietilenoglicol (PEG) 3350 é hidrofílico e, portanto, liga-se a moléculas de água de modo a diminuir o deslocamento dessas moléculas para fora do cólon, amolecendo e aumentando o seu conteúdo 9. Várias formulações desse agente livre de eletrólitos encontram-se disponíveis sem receita médica em alguns países para o tratamento da constipação em seres humanos. A metanálise de ensaios clínicos em pacientes humanos adultos e pediátricos sugere que o PEG3350 seja mais eficaz e mais bem tolerado do que a lactulose 10,11,12 por conta de sua palatabilidade e eficácia, o PEG3350 é o agente de escolha do autor para o tratamento de gatos com constipação. Em um estudo-piloto sobre PEG3350 em 6 gatos saudáveis, esse laxante demonstrou boa palatabilidade e amolecimento fecal; embora nenhum efeito adverso tenha sido observado, ocorreram pequenos aumentos sem significado clínico no potássio sérico em alguns gatos 13. Portanto, é recomendável a reavaliação dos eletrólitos séricos após o início da terapia.

A lactulose, um dissacarídeo não absorvível, é um agente osmoticamente ativo, embora seja fermentado por bactérias colônicas e possa causar timpanismo ou flatulência em seres humanos. Esse agente parece ser menos palatável para os gatos do que o PEG3350, mas também pode ser eficaz.

O autor recomenda que ambos os produtos sejam iniciados com uma dose baixa e depois titulados até fazer efeito; o PEG3350 pode ser administrado a uma dose inicial de 0,6-1,25 mL (1/8-1/4 colher das de chá) de pó por gato a cada 12 horas (misturado com alimento), enquanto a lactulose pode ser fornecida a uma dose de 0,5 mL (1/10 colher das de chá)/kg a cada 8-12 horas por via oral. São necessários alguns dias para que qualquer um desses agentes exerça seu máximo efeito; por essa razão, o aumento da dose deve ser realizado lentamente. A superdosagem de qualquer um deles pode levar à ocorrência de diarreia, desidratação ou distúrbios eletrolíticos.

Agentes procinéticos

Em alguns gatos, também há necessidade de agentes procinéticos; tais agentes são administrados como tratamento de manutenção, assim que a matéria fecal impactada não estiver mais presente no cólon. Quando disponível, a cisaprida, um agonista dos receptores da serotonina (5-HT4), é o agente de escolha do autor, utilizado a uma dose de 0,5 mg/kg VO a cada 12 horas. Foi demonstrado que esse fármaco estimula a motilidade no tecido colônico ex vivo de gatos com megacólon idiopático 14, segundo relatos anedóticos, a cisaprida parece ser eficaz e bem tolerada por gatos constipados. Todavia, a cisaprida foi retirada do mercado humano após relatos de arritmia cardíaca fatal (torsades de pointes) em virtude dos efeitos desse fármaco sobre outros tipos de receptores serotoninérgicos (5-HT) presentes no miocárdio. Embora esse efeito adverso não tenha sido relatado em pacientes felinos, um estudo observou um prolongamento dos intervalos Q-T em gatos submetidos a 60 vezes a dose terapêutica por 7 dias 15. A cisaprida ainda pode ser obtida em farmácias de manipulação veterinárias credenciadas em muitos países.

O tegaserode é outro agonista dos receptores 5-HT4 que comprovadamente acelera o trânsito intestinal no cólon canino quando administrado por via intravenosa 16, embora seu efeito em gatos não tenha sido descrito na literatura científica especializada. Mais uma vez, esse fármaco também foi retirado do mercado norte-americano em função de preocupações com a segurança cardíaca em seres humanos, mas foi recentemente reintroduzido sob uma rotulagem mais seletiva 17. A prucaloprida é outro agonista mais específico dos receptores 5-HT4 que demonstrou induzir a defecação em gatos 18, mas seu uso é off-label, ou seja, fora da indicação do rótulo. O autor não tem nenhuma experiência pessoal com o uso de tegaserode ou prucaloprida e, portanto, não se sente apto a defender o uso desses agentes. A ranitidina, um agonista dos receptores histaminérgicos H2, também tem um efeito anticolinesterásico e, em um estudo (relatado na forma de um resumo [abstract]), demonstrou induzir a motilidade no tecido colônico felino ex vivo 19. Contudo, a eficácia desse agente ainda não foi demonstrada in vivo.

Outras estratégias

Sempre que possível, é essencial abordar a causa médica subjacente da constipação (por exemplo, com a suplementação de tiroxina em gatos hipotireóideos). Curiosamente, em um estudo de gatos com fraturas pélvicas, das quais 74% foram tratadas por meio cirúrgico, a constipação foi uma complicação incomum, ocorrendo em apenas 8% dos casos, e o megacólon não se desenvolveu em nenhum gato 19. Assim, a estabilização cirúrgica pode ser considerada em um gato com fratura pélvica e consequente estreitamento dessa região, a fim de evitar o desenvolvimento posterior de megacólon.

Os resultados de um estudo-piloto sugeriram que um mix de probióticos disponível no mercado possa levar à melhora dos sinais e redução da inflamação colônica em gatos com constipação 20, entretanto, além de haver a necessidade de mais pesquisas, não se espera que todos os probióticos tenham o mesmo efeito.

Há uma variedade de enemas felinos/pediátricos e supositórios de volume apropriado disponíveis para uso em gatos (por exemplo, aqueles com sulfossuccinato sódico de dioctila e glicerina, ou docusato de sódio, PEG e glicerina em sua composição). Todavia, o autor normalmente não defende o uso desses enemas ou supositórios no ambiente domiciliar pelos clientes em virtude da carga imposta pela aplicação desse tipo de produto sobre o elo homem-animal.

Por fim, caso se acredite que fatores ambientais ou comportamentais tenham desempenhado um papel no desenvolvimento da constipação, eles também terão de ser abordados e solucionados.

Jonathan A. Lidbury

Existem muitas causas de constipação em gatos, sendo o megacólon idiopático a mais comum e, portanto, os clínicos precisam ser capazes de identificar a etiologia, a fim de iniciar um plano terapêutico personalizado para o paciente.

Jonathan A. Lidbury

Tratamento de pacientes internados

Os gatos constipados com maior grau de comprometimento necessitam de internação. A desidratação é um fator que contribui para o quadro ou uma complicação em muitos casos e deve ser tratada para um desfecho bem-sucedido. Fluidos intravenosos (inicialmente, empregam-se com frequência soluções cristaloides de reposição balanceadas) podem ser administrados para restaurar/manter a hidratação adequada e ajudar a corrigir quaisquer distúrbios eletrolíticos.

Enemas com água tépida (i. e., morna), soro fisiológico ou solução de Ringer com lactato (5-10 mL/kg) costumam ser bem tolerados e são frequentemente úteis. Se desejável, um lubrificante hidrossolúvel pode ser adicionado a esses itens. Em geral, o enema é administrado através de um cateter de borracha vermelha lubrificado, introduzindo delicadamente esse dispositivo alguns centímetros no cólon, embora isso possa ser difícil em casos de impactação fecal grave. É possível que seja necessário repetir a administração várias vezes com um intervalo apropriado (com frequência a cada 6 a 24 horas). A administração de enema pode levar ao surgimento de vômitos e à subsequente aspiração do conteúdo intestinal em gatos, mas o risco pode ser minimizado por uma aplicação feita sob anestesia geral com intubação endotraqueal. No entanto, a anestesia geral nem sempre é possível ou benéfica para o gato; nesse caso, é recomendável a administração de vários enemas de pequeno volume, em vez de um único enema de grande volume. O pré-tratamento com o antiemético maropitanto (1 mg/kg IV) é recomendado antes da administração do enema, enquanto o PEG3350 ou  a lactulose podem ser dados por via oral concomitantemente a gatos tolerantes a medicamentos orais. Observe que os enemas com fosfato em sua composição são contraindicados em gatos, pois podem levar a hipernatremia, hiperfosfatemia ou hipocalcemia potencialmente fatais.

A extração manual de fezes (inclusive daquelas gravemente impactadas) pode ser evitada na maioria dos gatos por meio da administração de uma solução de PEG3350 (em geral, produtos utilizados para o preparo do cólon antes do exame de endoscopia em pacientes humanos) a uma velocidade lenta constante através de um tubo nasoesofágico permanente. Um estudo em 9 gatos descreveu o uso de uma velocidade de administração de 6-10 mL/kg/h, com uma dose total média de 80 mL/kg (variação: 40-156 mL/kg) e relatou um tempo médio para uma defecação significativa de 8 horas (variação: 5-24 horas) 21. É preciso ter cuidado para garantir a colocação adequada do tubo nasoesofágico, incluindo radiografias laterais da região cervical e do tórax; além disso, o gato deve ser monitorado cuidadosamente para evitar aspiração. Também é uma boa prática avaliar periodicamente o estado de hidratação e as concentrações séricas de eletrólitos do gato durante a hospitalização.

Ocasionalmente, a extração digital das fezes é necessária, mas isso só deve ser feito sob anestesia geral com intubação endotraqueal. Primeiro, água tépida (i. e., morna), soro fisiológico, ou solução de Ringer com lactato – outra vez possivelmente misturado com algum lubrificante hidrossolúvel – é administrado sob a forma de enema para reidratar as fezes. Depois de aguardar alguns minutos até que ocorra a reidratação, tenta-se a extração manual utilizando delicadamente um dos dedos para remover as fezes, ao mesmo tempo em que se promove a movimentação de mais fezes no sentido distal em direção ao canal pélvico por meio de palpação abdominal caudal. Esse ciclo é repetido, conforme a necessidade. O autor não faz uso de fórceps (pinça) de parto ou outros instrumentos durante esse processo. Às vezes, não é possível reverter totalmente a obstipação de um gato na primeira tentativa, e o procedimento precisa ser repetido no dia seguinte; isso é preferível a uma única tentativa prolongada. As possíveis complicações incluem trauma colônico, perfuração colônica, aspiração, e problemas relacionados com a anestesia. Alguns clínicos administram antimicrobianos antes do procedimento (por exemplo, metronidazol) por conta do risco de translocação bacteriana.

Tratamento cirúrgico

Nos gatos em que a causa subjacente não é identificada ou não pode ser tratada da devida forma e que são irresponsivos a tratamento médico rigoroso, a colectomia subtotal pode ser a única opção que lhes resta. Embora um tratamento médico cuidadoso permita que essa cirurgia de grande porte seja evitada em muitos gatos, também é importante não esperar até que os pacientes refratários fiquem gravemente debilitados antes de recomendá-la. O protocolo específico está, no entanto, fora do escopo deste artigo.

Em um estudo retrospectivo recente de 151 gatos submetidos à colectomia subtotal, a remoção da junção ileocólica foi associada a resultados menos favoráveis do que nos casos em que ela foi preservada, mas, independentemente disso, os gatos costumavam apresentar diarreia por alguns meses após a cirurgia. De maneira encorajadora, os autores também constataram que a colectomia subtotal estava associada a longos tempos de sobrevida e a uma alta taxa de satisfação do tutor 22.

Considerações finais

A constipação é um problema frequentemente encontrado na clínica de pequenos animais, mas é importante enfatizar que nem sempre é fácil identificar a causa subjacente ou tratar a condição de uma forma bem-sucedida. Os gatos acometidos podem desenvolver morbidade significativa ao longo do tempo, o que pode levar o tutor a solicitar a eutanásia de seu pet; por isso, é vital que o clínico tenha uma atitude proativa. As ferramentas básicas de diagnóstico geralmente identificam se há uma causa primária e, com isso, o clínico pode elaborar um plano terapêutico apropriado para cada animal individualmente.

Referências

  1. Washabau RJ, Holt D. Pathogenesis, diagnosis, and therapy of feline idiopathic megacolon. Vet. Clin. North Am. Small Anim. Pract. 1999;29:589-603.

  2. Benjamin SE, Drobatz KJ. Retrospective evaluation of risk factors and treatment outcome predictors in cats presenting to the emergency room for constipation. J. Feline Med. Surg. 2020;22:153-160.

  3. Washabau RJ, Stalis IH. Alterations in colonic smooth muscle function in cats with idiopathic megacolon. Am. J. Vet. Res. 1996;57:580-587.

  4. Trevail T, Gunn-Moore D, Carrera I, et al. Radiographic diameter of the colon in normal and constipated cats and in cats with megacolon. Vet. Radiol. Ultrasound 2011;52:516-520.

  5. van der Schoot A, Drysdale C, Whelan K, et al. The effect of fiber supplementation on chronic constipation in adults: an updated systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials. Am. J. Clin. Nutr. 2022; DOI:10.1093/ajcn/nqac184. Epub ahead of print. 

  6. McManus CM, Michel KE, Simon DM, et al. Effect of short-chain fatty acids on contraction of smooth muscle in the canine colon. Am. J. Vet. Res. 2002;63:295-300.

  7. Rondeau MP, Meltzer K, Michel KE, et al. Short chain fatty acids stimulate feline colonic smooth muscle contraction. J. Feline Med. Surg. 2003;5:167-173.

  8. Freiche V, Houston D, Weese H, et al. Uncontrolled study assessing the impact of a psyllium-enriched extruded dry diet on faecal consistency in cats with constipation. J. Feline Med. Surg. 2011;13:903-911.

  9. Schiller LR, Emmett M, Santa Ana CA, et al. Osmotic effects of polyethylene glycol. Gastroenterology 1988;94:933-941.

  10. Lee-Robichaud H, Thomas K, Morgan J, et al. Lactulose versus polyethylene glycol for chronic constipation. Cochrane Database Syst. Rev. 2010:CD007570.

  11. Belsey JD, Geraint M, Dixon TA. Systematic review and meta analysis: polyethylene glycol in adults with non-organic constipation. Int. J. Clin. Pract. 2010;64:944-955.

  12. Candy D, Belsey J. Macrogol (polyethylene glycol) laxatives in children with functional constipation and faecal impaction: a systematic review. Arch. Dis. Child. 2009;94:156-160.

  13. Tam FM, Carr AP, Myers SL. Safety and palatability of polyethylene glycol 3350 as an oral laxative in cats. J. Feline Med. Surg. 2011;13:694-697.

  14. Hasler AH, Washabau RJ. Cisapride stimulates contraction of idiopathic megacolonic smooth muscle in cats. J. Vet. Intern. Med. 1997;11:313-318.

  15. Kii Y, Nakatsuji K, Nose I, et al. Effects of 5-HT4 receptor agonists, cisapride and mosapride citrate on electrocardiogram in anaesthetized rats and guinea-pigs and conscious cats. Pharmacol. Toxicol. 2001;89:96-103.

  16. Nguyen A, Camilleri M, Kost LJ, et al. SDZ HTF 919 stimulates canine colonic motility and transit in vivo. J. Pharmacol. Exp. Ther. 1997;280:1270-1276.

  17. Sayuk GS, Tack J. Tegaserod: what’s old is new again. Clin. Gastroenterol. Hepatol. 2022; 20:2175-2184.

  18. Rondeau M, Washabau RJ. Prucalopride, a 5-HT4 agonist stimulates canine and feline colonic smooth muscle contraction. J. Vet. Intern. Med. 2002;16:157. (abstract)

  19. Washabau RJ, Pitts MM, Hasler A. Nizatidine and ranitidine, but not cimetidine, stimulate feline colonic smooth muscle contraction. J. Vet. Intern. Med. 1996;19:157. (abstract)

  20. Rossi G, Jergens A, Cerquetella M, et al. Effects of a probiotic (SLAB51) on clinical and histologic variables and microbiota of cats with chronic constipation/megacolon: a pilot study. Benef. Microbes 2018;9:101-110.

  21. Carr AP, Gaunt GM. Constipation resolution with administration of polyethylene-glycol solution in cats. J. Vet. Intern. Med. 2010;24:753-754. (abstract)

  22. Grossman RM, Sumner JP, Lopez DJ, et al. Evaluation of outcomes following subtotal colectomy for the treatment of idiopathic megacolon in cats. J. Am. Vet. Med. Assoc. 2021;259:1292-1299.

Jonathan A. Lidbury

Jonathan A. Lidbury

O Dr. Lidbury se formou em medicina veterinária pela Universidade de Glasgow, Escócia, em 2002. Leia mais

Outros artigos nesta edição

Número da edição 33.1 Publicado 20/12/2023

Hipoadrenocorticismo atípico canino

A doença de Addison talvez não seja o primeiro diagnóstico que vem à mente quando um cão apresenta sinais gastrointestinais, mas essa possibilidade não deve ser descartada, como descreve Romy Heilmann.

por Romy M. Heilmann

Número da edição 33.1 Publicado 06/12/2023

Glúten na saúde humana e canina

As dietas livres de glúten estão em alta tanto entre os seres humanos quanto entre os cães. Contudo, quão prevalentes são os distúrbios associados ao glúten? Este artigo explora e compara o conhecimento atual sobre esses distúrbios em ambas as espécies.

por Chih-Fan Chiang

Número da edição 33.1 Publicado 22/11/2023

Transplante de microbiota fecal para distúrbios gastrointestinais

O transplante de microbiota fecal está começando a ser visto como uma opção viável para tratar diversos problemas gastrointestinais agudos e crônicos em cães, como explica Linda Toresson.

por Linda Toresson

Número da edição 33.1 Publicado 20/11/2023

Insuficiência pancreática exócrina felina

A insuficiência pancreática exócrina felina é mais comum do que geralmente se imagina. Este artigo oferece dicas para um diagnóstico e tratamento bem-sucedidos da doença.

por Panagiotis G. Xenoulis