Revista médica e científica internacional dedicada a profissionais e estudantes de medicina veterinária.
Veterinary Focus

Número da edição 32.1 Outros conteúdos científicos

Lidando com o neonato canino doente

Publicado 09/08/2022

Escrito por Sylvie Chastant

Disponível em Français , Deutsch , Italiano , Español , English , ภาษาไทย e Українська

Como a “Síndrome do Definhamento do Neonato” é bem reconhecida na clínica veterinária, o presente artigo fornece uma abordagem prática para o problema.

The correct position for holding a neonate puppy when placing the feeding tube

Pontos-chave

Um filhote recém-nascido que aparentemente está doente deve ser considerado uma emergência e atendido na clínica o mais rápido possível.


É importante monitorar e controlar as condições ambientais do recém-nascido, principalmente no que diz respeito à temperatura, umidade e higiene.


A provisão de cuidados satisfatórios, incluindo o fornecimento de nutrição e a indução dos processos de defecação e micção, desempenha um papel crucial em aumentar as chances de recuperação de um filhote em processo de definhamento.


A septicemia é o problema mais frequente encontrado durante o período neonatal, mas a “Síndrome dos 4Hs” (hipotermia-hipoglicemia-hipoxia-hipovolemia) também desempenha um papel importante em caso de doença e morte neonatal.


Introdução

Os pacientes veterinários com menos de três semanas de vida são frágeis e – por inúmeras razões – podem definhar muito rapidamente quando estão doentes. Para 85% dos filhotes caninos que morrem no primeiro mês de vida, os sinais clínicos aparecem menos de cinco dias antes do óbito; por isso, os filhotes recém-nascidos que parecem estar doentes devem ser encarados como uma emergência assim que o tutor entrar em contato com a clínica e, de modo geral, o tratamento é implementado antes de (e, na maioria das vezes, sem) qualquer diagnóstico etiológico preciso (exato). Os sinais clínicos em neonatos caninos costumam ser inespecíficos e podem incluir desconforto respiratório, choro, distensão e dor abdominal, anorexia, baixo ganho de peso, fraqueza e hipotermia, mas nenhum deles é patognomônico para uma causa subjacente específica.

 

Fatores iniciais a serem considerados

O tutor deve ser solicitado a trazer não só o filhote doente até a clínica, mas também os irmãos da ninhada e a mãe; entre outras coisas, o exame de todos os indivíduos em uma ninhada pode permitir a identificação precoce de outros filhotes doentes. O exame da fêmea progenitora pode identificar alguma condição capaz de afetar a saúde do(s) filhote(s) – como metrite, mastite, agalactia/hipogalactia, mamilos invaginados (que impedem a amamentação) ou (raramente) vesículas vulvares indicativas de infecção materna por herpes-vírus. Caso o tutor esteja monitorando os pesos dos neonatos, é útil que ele traga também os números ou as curvas de crescimento. Também é vital fornecer orientações sobre a forma correta de transportar os filhotes recém-nascidos; como os neonatos têm uma termogênese deficiente, é importante que a temperatura ambiente durante o transporte seja mantida em torno de 28°C. No entanto, também se deve evitar o excesso de calor, pois os recém-nascidos não conseguem se afastar de nada que esteja muito quente. Almofadas de aquecimento para micro-ondas ou bolsas de água quente devem ser usadas com cautela para evitar hipertermia induzida e prevenir queimaduras na pele (além disso, garrafas cilíndricas também podem rolar e esmagar recém-nascidos). A hipertermia não só interfere na avaliação clínica, uma vez que os recém-nascidos superaquecidos choram e, muitas vezes, ficam hiperativos, mas também aumenta o metabolismo do filhote e, portanto, seu gasto energético.

Uma vez na clínica, algumas precauções de higiene são aconselháveis. Os recém-nascidos têm um sistema imunológico imaturo e devem ser protegidos contra infecções nosocomiais; por isso, o tempo de permanência na sala de espera deve ser o mais breve possível, sem contato com nenhuma superfície nem com outros animais. O exame deve ser feito em uma superfície limpa e seca, de preferência aquecida (p. ex., sobre uma almofada térmica ajustada a 28-35°C), com as mãos enluvadas e desinfetadas. O ideal é que o clínico também use roupas limpas.

 

Exame clínico da fêmea progenitora

Um exame clínico geral deve incluir uma avaliação quanto à presença de sinais de bacteremia; por exemplo, existe alguma evidência de infecção na pele, nos ouvidos ou na boca (incluindo tártaro dentário) da mãe que possa representar uma fonte (origem) de bactérias? Há algum corrimento vaginal de odor fétido indicativo de metrite? Examine as glândulas mamárias em busca de sinais de mastite e quanto ao desenvolvimento inadequado do tecido mamário; avalie também a anatomia do mamilo para verificar se os neonatos conseguem mamar com facilidade (Figura 1). O escore de condição corporal da mãe também deve ser avaliado para verificar sua capacidade de secretar uma quantidade suficiente de leite, e também se deve avaliar seu comportamento materno; a mãe mostra interesse pelo choro de seus filhotes? Contudo, o clínico deve ter cuidado com a mãe ao manusear a ninhada, uma vez que as mães superprotetoras podem morder em tais situações.

The clinician should not neglect to check the dam

Figura 1. O clínico não deve deixar de examinar a fêmea progenitora; isso implica não só verificar se ela está produzindo leite suficiente para alimentar seus filhotes da devida forma, mas também averiguar se os mamilos estão disponíveis para o recém-nascido e se eles não estão invaginados.

Créditos: Sylvie Chastant

O exame clínico neonatal

O clínico deve primeiro verificar alguns fatos importantes sobre a nutrição de um filhote nos dias anteriores: como foi a alimentação durante as primeiras 8 horas de vida (ou seja, o período em que a barreira intestinal está aberta para permitir a transferência passiva de anticorpos colostrais) 1, e o tutor está dando mamadeira aos filhotes (já que a aspiração com possíveis complicações respiratórias é possível)? Se os filhotes forem pesados, o cálculo de sua taxa de crescimento entre o nascimento e dois dias de vida também fornece informações relevantes: 96% dos filhotes que perdem peso durante esse período tiveram uma transferência imune passiva inadequada 2. O ideal é que não haja perda de peso nos dois primeiros dias de vida. Posteriormente, os pesos devem ser comparados com a curva de crescimento de referência para a raça (Figura 2) 3O objetivo é um ganho diário de cerca de 2-4 g por quilograma do peso adulto esperado, com uma meta mínima de 1,5 vezes o peso ao nascer no dia 7 e 3 vezes o peso ao nascer no dia 21.

Weight is a pivotal element of the clinical examination and follow-up of the newborn

Figura 2. O peso é um dos principais elementos do exame clínico e do acompanhamento do recém-nascido.

Créditos: Sylvie Chastant

A temperatura do filhote deve ser medida utilizando um termômetro eletrônico pediátrico com ponta lisa; os termômetros infravermelhos sem contato ainda não foram avaliados para os neonatos. A temperatura normal do recém-nascido é inferior à de um adulto. Como orientação, a maioria dos filhotes terá uma temperatura média de 36,5 ± 1°C no dia 1, 37,0 ± 1,3°C no dia 7 e 37,2 ± 0,5°C nos dias 14-21 4Existem dois pontos críticos a serem observados aqui. Em primeiro lugar, um filhote hipotérmico deve ser aquecido gradualmente (aumentando no máximo 1°C por hora); o aquecimento abrupto pode levar ao óbito por vasodilatação periférica e ativação excessiva do metabolismo celular. O ideal é aquecer com o uso de uma incubadora, aumentando progressivamente a temperatura em 1 grau a mais que a do neonato até atingir 37°C. A incubadora deve ser ajustada com uma umidade em torno de 55-65%. Em segundo lugar, a alimentação deve ser adiada até que os recém-nascidos alcancem 35°C: uma temperatura abaixo desse ponto induz a estase intestinal e inibe a atividade enzimática digestiva. Como consequência, o leite ficará estagnado no estômago e/ou continuará não digerido, criando condições para a proliferação bacteriana e levando a bacteremia e morte.

Pode não ser uma tarefa fácil determinar o estado de hidratação de um filhote recém-nascido, uma vez que a perda da elasticidade da pele não é elucidativa nessa idade. A desidratação pode ser determinada de forma subjetiva, avaliando-se a secura da mucosa oral (xerostomia), ou de maneira objetiva, medindo-se a densidade urinária com um refratômetro (Figura 3). A urina pode ser coletada em um pequeno tubo plástico massageando a região perineal com uma haste de algodão umedecida com água tépida (morna); qualquer valor de densidade urinária superior a 1,030 é considerado significativo. Na ausência de um refratômetro, a cor da urina pode ser útil; como a urina do neonato geralmente é quase incolor, uma cor amarelo-escura é indicativa de desidratação.

A refractometer is the only accurate way to check a puppy’s hydration status

Figura 3. Um refratômetro é a única maneira precisa (exata) de verificar o estado de hidratação de um filhote medindo sua densidade urinária; qualquer valor acima de 1,030 é sugestivo de desidratação.

Créditos: Sylvie Chastant 

Uma atenção especial deve ser dada ao umbigo; esta é uma importante via de penetração bacteriana, uma vez que a veia umbilical está em conexão direta com o fígado, e as artérias umbilicais com a artéria ilíaca. Se o resquício do cordão umbilical não secar e não cair dentro de uma semana após o nascimento, isso pode ser indicativo de onfalite/onfaloflebite e, possivelmente, bacteremia.

Ainda que o filhote já tenha vários dias de vida, é importante avaliar a presença de defeitos congênitos; estes incluem hidrocefalia, fenda palatina e atresia anal. Verifique junto ao tutor se ele notou a passagem de mecônio ou fezes, embora isso possa ser difícil de determinar em virtude da lambedura dos filhotes pela mãe. A avaliação cardíaca pode revelar uma bradicardia (100-150 batimentos por minuto [bpm]); este é frequentemente um reflexo protetor associado à hipotermia e não uma indicação para administrar algum fármaco cardíaco.

 

Outros testes de diagnóstico

Amostra sanguínea

O sangue pode ser coletado em qualquer idade por meio de punção jugular (com agulha calibre 23-25), embora em neonatos seja importante evitar o uso de álcool na pele (para limitar o sangramento pós-coleta e o resfriamento do neonato), e o local deve ser comprimido completamente por pelo menos um minuto depois. Apesar disso, a punção jugular costuma ser muito mais fácil para o clínico do que o esperado e bastante segura para o recém-nascido. Os valores de referência para neonatos diferem daqueles para adultos (Tabela 1). A glicemia é o parâmetro mais fácil (e mais útil) de medir, utilizando um glicosímetro destinado a pacientes diabéticos, e requer apenas uma única gota de sangue obtida através de uma picada na orelha ou na pata. A coleta pode ser auxiliada com a aplicação de vaselina na pele.

Tabela 1. Valores de referência para parâmetros sanguíneos em neonatos caninos (adaptado de 5, 6, 7, 8).

Idade em semanas 1 2 3
Ureia (g/L)
0,35-1,01
0,12-0,6 0,19-0,49
Creatinina (mg/L)
<1-7
2-10 2-7
Fosfatase alcalina (IU/L)
3000-7000
600-1300 110-260
Proteínas totais (g/L)
32-45
25-42 33-43
Glicose (g/L)
0,7-1,5
0,7-1,4 0,5-1,6
Hematócrito (%)
21-46
18-33 21-37
Eritrograma (x106/µL)
3,6-5,9
3,4-4,4 2,8-4,3
Leucograma (x103/µL) 4-23
1,7-19
2,1-21

 

Técnicas de diagnóstico por imagem

Os exames radiográficos e ultrassonográficos podem ser confusos, pois vários achados que seriam anormais em adultos podem não ter significância em recém-nascidos (Figura 4). Por exemplo, um derrame peritoneal é observado em 60% dos filhotes durante as duas primeiras semanas de vida (e em 30% com 1 mês de idade) e não tem consequências clínicas; o líquido dessa efusão desaparecerá espontaneamente. Da mesma forma, observa-se dilatação da pelve renal em 40% dos filhotes examinados no dia 2, 25% no dia 7 e 5% aos dois meses de idade, sem quaisquer sinais clínicos. O córtex renal do neonato pode apresentar duas camadas distintas (a externa é hipoecogênica, enquanto a interna, mais ecogênica) em um exame até o dia 14 de vida. Até o dia 21, o parênquima esplênico pode exibir uma ecotextura de “leopardo” muito característica, supostamente associada à ativação do sistema imunológico do recém-nascido (dados não publicados do autor).

Mais detalhes sobre o exame clínico do filhote neonatal estão disponíveis on-line (em francês, inglês e alemão) sob a forma de acesso livre em https://neocare.pro/le-developpement-du-chiot/.

A DV radiograph showing the thorax of a 7-day-old crossbred puppy

Figura 4. Radiografia dorsoventral que mostra o tórax de um filhote mestiço de 7 dias de vida. O lobo caudal do pulmão direito aparece anormalmente radiopaco, o que indica hepatização. O filhote estava gravemente dispneico, mas esse quadro apresentou resolução após antibioticoterapia sistêmica e nebulização com corticosteroide.

Créditos: Sylvie Chastant

Internação – por que, quem e onde

Por que internar?

A internação não só permitirá a realização de procedimentos terapêuticos específicos (intubação orogástrica, administração de fluidos e terapia medicamentosa), mas também ajudará a garantir o monitoramento e os cuidados intensivos: o recém-nascido debilitado pode definhar rapidamente e, muitas vezes, sem aviso prévio. Embora a maioria dos distúrbios no filhote tenham um componente bacteriano, três fatores se combinam para agravar o quadro: hipotermia, hipoglicemia e desidratação. A internação ajudará a controlar esses elementos e, sem os devidos cuidados, os tratamentos médicos são ineficazes. A internação também pode ajudar a diminuir as preocupações do tutor e – se o óbito vier a acontecer – permitirá a realização de uma necropsia rapidamente.

Quem internar?

A internação da mãe tem o benefício de reduzir a carga de amamentação do filhote doente, mas isso implica a necessidade de cuidar de toda a ninhada, inclusive dos animais que estão bem: eles, então, ficam desnecessariamente expostos ao risco de doenças nosocomiais. Além disso, é difícil realizar cuidados intensivos (como a infusão de fluidos) em filhotes colocados ao lado de sua mãe, pois a lambedura deles por ela pode danificar uma linha de gotejamento ou outros equipamentos. Em geral, apenas o recém-nascido doente deve ser internado; no caso da internação de vários filhotes da mesma ninhada, eles deverão ser identificados com o uso de coleiras coloridas. Se parte ou toda a ninhada  permanecer na clínica, é importante prevenir o desenvolvimento de mastite na mãe em virtude da falta de atividade de aleitamento.


Onde internar?

O ideal é que um filhote recém-nascido fique em um ambiente afastado de outros pacientes internados – com um suprimento de oxigênio à mão – em um recinto controlado por termostato. Esse recinto pode ser uma incubadora especial para filhotes, uma incubadora neonatal humana de segunda mão (Figura 5), uma incubadora de aves ou até mesmo um dispositivo caseiro utilizando um grande recipiente de plástico ou um aquário equipado com uma tampa (mas uma que permita a circulação de ar, obviamente). As incubadoras pequenas têm a vantagem de ser portáteis: se a clínica não contar com uma equipe dedicada ao monitoramento durante a noite, o médico-veterinário poderá levar a ninhada até a própria casa para o tratamento, embora isso não seja o ideal. As incubadoras normalmente também permitirão manter uma alta umidade (60%): os recém-nascidos podem ficar significativamente desidratados, perdendo umidade tanto pela pele como pela via respiratória, sobretudo quando respiram com a boca aberta. Geralmente, a temperatura da incubadora deve ficar em torno de 28-30°C na primeira semana de vida e 26-28°C na semana seguinte, mas deve ser ajustada conforme a necessidade, de acordo com a temperatura dos recém-nascidos para mantê-los entre 36 e 38°C. Lembre-se de que as incubadoras só fornecem calor: elas não são capazes de reduzir a temperatura abaixo da temperatura ambiente. Na ausência de incubadora com controle por termostato, podem ser utilizados tapetes térmicos ou almofadas seguras próprias para micro-ondas (depois de verificar a temperatura no ponto de contato com os recém-nascidos); não se recomenda o uso de lâmpadas infravermelhas.

Hospitalized puppies should be kept in a dedicated incubator

Figura 5. Os filhotes internados devem ser mantidos em uma incubadora reservada para eles, o que permite o controle preciso (exato) tanto da temperatura como da umidade.

Créditos: Sylvie Chastant

Tanto a incubadora como todas as superfícies dos locais de alojamento devem ser limpas e desinfetadas regularmente para garantir que o neonato não seja contaminado com bactérias de animais adultos internados. No entanto, a escolha do desinfetante é algo importante, pois alguns podem danificar a pele delicada do recém-nascido. A exigência de desinfecção também se aplica a todos os equipamentos necessários para a alimentação dos filhotes, como mamadeiras, bicos e seringas e, caso se faça uso de um substituto do leite, ele deverá ser armazenado conforme as instruções do fabricante (inclusive entre internações sucessivas).


Tratamento médico e cuidados intensivos

A reidratação de neonatos pode ser realizada pelas vias subcutânea, intravenosa (IV) ou intraóssea (IO) (esta última pelo fêmur). Para as duas últimas opções, é importante eliminar o ar do equipo antes de conectá-lo ao filhote. Note que o risco de sobrecarga hídrica (e, consequentemente, edema pulmonar) é alto em filhotes recém-nascidos; portanto, no tratamento de desidratação moderada a grave, deve-se administrar um bólus de solução isotônica de Ringer com lactato (30-45 mL/kg), seguido de uma taxa de infusão contínua a 3-4 mL/kg/h (com adição de dextrose, se necessário) 9. Embora a via intravenosa seja preferível 10não se deve deixar um cateter intraósseo no local por mais de 3 dias devido ao risco de osteomielite. Não há necessidade de aquecer a infusão por conta da baixa taxa de fluxo envolvida; os fluidos aquecidos simplesmente esfriarão à medida que passarem pelo equipo.

Para tratar a hipoglicemia, o filhote deve receber um bólus IV de dextrose a 12,5% (dextrose a 50% diluída na proporção de 1:4) a uma dose de 1 mL/kg, seguido de solução isotônica (Ringer) com adição de dextrose (1,25- 5%) a uma taxa de infusão contínua. Um recém-nascido menos crítico com temperatura corporal normal pode receber uma solução de glicose a 5-10% a uma taxa de 0,25 mL/30 g 9,10As soluções de açúcar (glicose a 30% ou mel) podem ser administradas por via oral para evitar hipoglicemia, com algumas gotas aplicadas na língua ou no interior da boca.

A terapia medicamentosa em recém-nascidos é potencialmente problemática; antes de administrar qualquer medicação, é preciso avaliar a sua segurança em neonatos. Para tanto, é melhor obter esse tipo de informação a partir de livros didáticos (por ex., 11em vez de usar as recomendações do fabricante, uma vez que a maioria dos medicamentos não foi avaliada para os recém-nascidos antes de sua aprovação. Como a maior parte das doenças neonatais tem um componente bacteriano, a antibioticoterapia quase sempre é administrada de forma rotineira. Sempre que possível, isso deve ser feito por via subcutânea ou intravenosa; a administração oral em animais menores requer preparações líquidas, com risco de dosagem descontrolada e erro de dosagem. Além disso, alguns antibióticos administrados por via oral (sobretudo ampicilina, metronidazol e amoxicilina) podem modificar (pelo menos temporariamente) a flora digestiva, aumentando o risco de diarreia. Os antibióticos de primeira escolha da autora são ampicilina/amoxicilina e amoxicilina-ácido clavulânico, seguidos por alguns agentes da classe dos macrolídeos (eritromicina, tilosina) e cefalexina ou ceftiofur. Outros antibióticos com efeitos colaterais conhecidos (p. ex., aminoglicosídeos – que podem causar nefrotoxicidade – e tetraciclinas – que podem manchar o esmalte do dente) podem ser considerados, mas apenas por um curto período de tempo e nos casos em que nenhum outro antibiótico é eficaz (p. ex., se não houver nenhuma melhora clínica após três dias de tratamento) ou se indicados pelos resultados do antibiograma.

Sylvie Chastant

O ideal é que um filhote internado seja mantido em uma incubadora que mantenha níveis ideais de temperatura e umidade, necessários para um recém-nascido.

Sylvie Chastant

Cuidados com os filhotes caninos

O sucesso do tratamento médico e cirúrgico depende da qualidade dos cuidados gerais. Além da administração de injeções, infusões de fluidos e similares, os filhotes requerem cuidados muito mais intensivos do que os animais mais idosos, incluindo pesagem diária, alimentação frequente e indução de defecação/micção, sem mencionar os cuidados preventivos de rotina, como tratamentos programados contra vermes. A equipe responsável por esses cuidados gerais se beneficiará de um treinamento específico sobre avaliação e assistência ao neonato. A nutrição adequada é particularmente importante; a alimentação pode ser realizada com mamadeira ou sonda (Tabela 2), mas primeiro é preciso conferir a temperatura retal (alimentar apenas se a temperatura estiver acima de 35°C) e avaliar o estômago (alimentar somente se o estômago estiver vazio). Se o estômago não tiver esvaziado 4 horas depois da última refeição, verifique se há hipotermia e se o filhote defecou; se o reto estiver cheio, a defecação poderá ser estimulada com a ponta de um termômetro.

Tabela 2. Opções de alimentação para neonatos caninos.

  Vantagens Desvantagens
Alimentação por mamadeira
O neonato pode se alimentar em um esquema ad libitum (ou seja, à vontade)
Trata-se de uma atividade relaxante para o neonato
Estimula a digestão 
• É demorada
• Há risco de aspiração
• Não é possível na ausência do reflexo de sucção
Contraindicada na presença de fenda palatina
Alimentação por sonda
É rápida
É possível se o reflexo de sucção estiver ausente
Uma alimentação segura se o filhote exibir fenda palatina 
Risco de administração nas vias aéreas (limitado)
Requer treinamento, embora seja uma técnica fácil
Risco de sobrecarga do estômago e vômitos/regurgitação 

 

A melhora clínica de um filhote doente costuma ser demonstrada inicialmente pela interrupção do choro constante, aumento da vitalidade e normalização da temperatura retal; maior segurança e tranquilidade é obtida se o filhote internado começar a ganhar peso dentro de um dia ou mais. Também é essencial não descuidar dos tutores – que, no caso, estarão muito preocupados; além disso, é importante garantir que eles sejam informados sobre o estado do paciente, pelo menos uma vez, se não duas, por dia. O envio de gráficos de peso, fotos ou vídeos curtos da alimentação do filhote mantém os tutores atualizados sem desperdiçar muito tempo, e a equipe responsável pelos cuidados do filhote pode desempenhar um papel fundamental nessa comunicação.

 

Continuação do tratamento – internação domiciliar?

Mesmo que o filhote recém-nascido seja um animal de pedigree potencialmente valioso, muitas vezes não é fácil fazer a devida cobrança dos encargos pelo tempo gasto em cuidados hospitalares (e talvez ainda mais se estivermos lidando com um animal mestiço ou sem registro). A internação em casa pode ser uma opção após o tratamento inicial na clínica, podendo ser facilitada por meio de sessões de orientação ao tutor. Essas orientações são particularmente eficazes para os criadores, pois, além de terem mais tempo e uma forte motivação, muitas vezes eles terão a sua própria incubadora. Dessa forma, os custos contínuos são reduzidos, e os riscos de infecção nosocomial (i. e., hospitalar) também. Vale a pena treinar o tutor em técnicas básicas (injeções subcutâneas, medição da densidade urinária e alimentação por sonda [Quadro 1]) e, uma vez que o filhote tenha retornado para casa, o progresso pode ser monitorado por meio de uma atualização diária através de telefonemas com a equipe responsável.

Quadro 1. Alimentação segura por sonda.

  • Selecione uma sonda com 1,5 mm de diâmetro para animais com menos de 300 g, e de 2,6 a 3,3 mm para aqueles acima desse peso.
  • Determine o comprimento correto para introduzir a sonda, medindo a distância entre o queixo do filhote e a ponta do cotovelo; marque a distância com uma caneta hidrográfica ou um marcador.
  • Encha a seringa com leite aquecido a 37°C, calculando 4-5 mL/100 g de peso corporal.
  • Conecte a sonda à seringa e encha-a com leite, garantindo que todo o ar seja removido.
  • Coloque o recém-nascido em decúbito ventral, com a cabeça e o corpo alinhados. Abra um pouco a boca do filhote, pressionando as laterais dela. Mantenha a cabeça reta e introduza a sonda na boca (Figura 6).
  • Avance a sonda em direção à faringe e permita que o recém-nascido a engula (isso deve acontecer mesmo com filhotes fracos). É importante notar que não há reflexo de tosse, inclusive se a sonda entrar na traqueia, até os 6-10 dias de vida.
  • Para evitar a regurgitação, o volume de leite é limitado (4-5 mL por 100 g de peso corporal) e administrado durante 1-2 minutos para permitir a repleção ou enchimento gradual do estômago.
  • Uma vez finalizada a alimentação, dobre a sonda ao meio (para interromper o fluxo de leite) antes de removê-la.
  • A sonda deve ser limpa imediatamente com água quente e detergente, depois enxaguada e seca antes de guardá-la em um local limpo até a próxima refeição.
  • O substituto do leite artificial (também conhecido como sucedâneo do leite) deve ser preparado na hora para cada sessão de alimentação.
The correct position for holding a neonate puppy when placing the feeding tube

Figura 6. A posição correta para segurar um filhote recém-nascido ao colocar a sonda de alimentação.

Créditos: Karine Reynaud 

Principais causas de mortalidade neonatal

Se um filhote vier a óbito, a necropsia, seguida de exame bacteriológico, histológico e/ou reação em cadeia da polimerase (PCR), pode ajudar a identificar a causa subjacente, o que muitas vezes pode ser multifatorial (Quadro 2). Embora vários patógenos específicos sejam implicados (Tabela 3), infecções bacterianas oportunistas inespecíficas que levam à septicemia são consideradas responsáveis por 40-65% de todas as mortes neonatais 12,13Os recém-nascidos são infectados principalmente pela via oral e/ou pelos vasos umbilicais patentes, e o desenvolvimento da septicemia depende da exposição a uma carga bacteriana significativa (do ambiente ou da mãe) e/ou de uma debilidade intrínseca do neonato decorrente da assim-chamada “síndrome dos 4Hs” (hipotermia-hipoglicemia-hipoxia-hipovolemia). Outros fatores também podem estar envolvidos. Cargas parasitárias significativas (especialmente nematódeos, ancilostomídeos e coccídios) podem ser um dos principais fatores, seja por competição direta pelos nutrientes e/ou indiretamente através da indução de diarreia. O parasitismo também pode ser indiretamente responsável pela bacteremia, com a migração de larvas de Toxocara passando do trato digestivo para os pulmões através do fígado e disseminando bactérias a partir do trato gastrointestinal. Por fim, também pode haver o envolvimento de algum tipo de trauma. Isso pode ser de origem acidental, com tutores “agressivos” ou impacientes ao dar a mamadeira. Essa morte neonatal de origem traumática é particularmente possível com recém-nascidos fracos que apresentam um reflexo de deglutição ineficiente, causando aspiração do leite. As lesões causadas pela fêmea progenitora também são possíveis; se os recém-nascidos forem esmagados ou mordidos pela mãe, isso poderá ser atribuído a um comportamento materno inadequado; no entanto, a debilidade do próprio recém-nascido (por hipoglicemia e hipotermia) costuma ser o gatilho inicial.

Quadro 2. Fatores predisponentes ao óbito em filhotes recém-nascidos.

Bactérias oportunistas  -> septicemia

Síndrome dos “4Hs”: Hipotermia-hipovolemia-hipoglicemia-hipoxia

Patógenos específicos
Traumatismos
Defeitos congênitos
Carga parasitária

 

Tabela 3. Causas infecciosas específicas de morte neonatal (0-21 dias de vida).

Vírus Bactérias Parasitas
• CHV1(Herpes-vírus canino)
• CPV1 (Parvovírus canino tipo 1)
• CDV (Vírus da cinomose canina)
• CCoV (Coronavírus canino)
• CAV2 (Adenovírus canino tipo 2)
Brucella spp.
• Salmonella spp.
• Campylobacter jejuni
• Bordetella bronchiseptica 
Neospora caninum
• Toxocara canis
• Ancylostoma spp

 

Necropsia e exames complementares

Se um filhote vier a óbito, é importante realizar um exame de necropsia; entretanto, alguns fatores são cruciais para otimizar a qualidade dos resultados: se o exame não puder ser realizado imediatamente após a morte, o cadáver do filhote deverá ser armazenado a +4°C. O congelamento não é uma medida adequada, pois interfere na histopatologia e pode gerar confusão inclusive no exame macroscópico após o descongelamento. Os médicos-veterinários muitas vezes devem ser encorajados a realizar uma necropsia, possivelmente porque eles estão preocupados com o fato de que as diferenças entre recém-nascidos e adultos sejam confusas. Apesar disso, a observação macroscópica geralmente fornece evidências quanto à causa da morte. Por exemplo, esse exame pode revelar uma falha na ingestão de leite (estômago e intestinos vazios, vesícula biliar cheia, retenção de mecônio), uma importante anomalia congênita (p. ex., atresia do jejuno) ou uma carga parasitária maciça (parasitas visíveis nos intestinos ou cicatrizes hepáticas causadas pela migração das larvas de Toxocara). Fotografias de órgãos obtidas no post-mortem também podem permitir uma análise retrospectiva. Com frequência, não haverá lesões evidentes na necropsia; todavia, é recomendável a obtenção de amostras para exames adicionais (bacteriologia, histologia, PCR e parasitologia) que podem ajudar a determinar a causa da morte.

A cultura bacteriológica é elucidativa apenas se o óbito ocorreu em menos de 6 horas antes da necropsia; caso contrário, as bactérias escapam do trato digestivo e contaminam outros órgãos. Um swab estéril é introduzido profundamente no parênquima esplênico e transferido para um frasco estéril, tendo o cuidado de evitar contaminação ao acessar a cavidade abdominal. O baço inteiro também pode ser coletado de maneira estéril. Se necessário, as amostras devem ser refrigeradas antes de enviá-las ao laboratório. Este, por sua vez, deverá receber as amostras para análise em até 24 horas.

Os tecidos para exame histopatológico devem ser colocados em formalina a 10% (formaldeído a 3,4%). As amostras não devem ter mais de 5 mm de espessura e precisam ser processadas (utilizando uma técnica embebida em parafina) dentro de 7 dias após a coleta para permitir uma interpretação ideal pelo laboratório de patologia.

A avaliação parasitológica pode ser feita por meio de exame macroscópico do conteúdo intestinal e retal, mas também pode ser auxiliada por amostras histológicas (p. ex., para pesquisa de Neospora e Toxoplasma).

Finalmente, se o cadáver foi congelado antes da necropsia e/ou se houver sinais de autólise, a técnica de PCR é a única opção de exame confiável; nesse caso, a PCR quantitativa (em tempo real) pode fornecer informações úteis para a maioria dos agentes infecciosos.

 

Considerações finais

O cuidado de um filhote recém-nascido doente depende muito mais do aleitamento adequado, bem como de fluidos de suporte e antibioticoterapia, do que qualquer medicação específica. A instituição rápida do tratamento é um elemento-chave para o sucesso, juntamente com medidas preventivas apropriadas para todos os companheiros da mesma ninhada. Na maioria dos casos, os sinais clínicos antes da morte são de curta duração e muito semelhantes, seja qual for a causa subjacente; por isso, não é raro que o tratamento seja malsucedido. Para controlar a mortalidade neonatal, deve-se implementar uma abordagem proativa; nesse caso, uma visita ao estabelecimento de criação é a melhor forma de avaliar a organização em torno do nascimento dos filhotes (ou seja, no periparto), com foco no manejo da gestação e do parto, na reanimação e nutrição dos recém-nascidos, nos procedimentos de higiene e nas condições do ambiente.

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Sylvie Chastant

Sylvie Chastant

Sylvie Chastant é médica-veterinária francesa, cujas paixões são o ensino e a investigação aplicada na reprodução animal. Leia mais

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