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Veterinary Focus

Número da edição 32.3 Outros conteúdos científicos

Transfusão sanguínea em cães e gatos

Publicado 17/07/2023

Escrito por João Araújo e Maria João Dourado

Disponível em Français , Deutsch , Italiano , Español e English

Dúvidas sobre qual hemoderivado escolher e quando usar? Este artigo oferece uma revisão das opções atualmente disponíveis para transfusão sanguínea em pequenos animais. 

Unidade de sangue canino

Pontos-chave

Atualmente, existem bancos de sangue em muitos países, e as transfusões de hemoderivados podem ser realizadas na maioria das clínicas gerais.


Diferentes hemoderivados podem ser obtidos a partir do sangue total, e o médico-veterinário deve escolher o mais adequado para cada caso.


A tipagem sanguínea (determinação do tipo sanguíneo) e a prova cruzada (teste de compatibilidade) são essenciais antes de qualquer transfusão de sangue.


Ocasionalmente, podem ocorrer reações adversas à transfusão; por isso, o paciente deve ser cuidadosamente monitorado antes, durante e depois da transfusão sanguínea.


Introdução

A medicina transfusional ocupa um lugar importante na clínica veterinária de pequenos animais, especialmente na área de emergência e cuidados intensivos. Graças à criação de novos bancos de sangue em muitos países, as clínicas agora têm acesso rápido e fácil a diferentes hemoderivados. Além disso, o desenvolvimento de métodos inovadores e rápidos para a determinação de grupos sanguíneos e os testes de compatibilidade cruzada, bem como os recentes avanços no conhecimento, tornaram possível a realização de transfusões na maioria das clínicas. No entanto, embora a transfusão de sangue possa salvar a vida do animal, ela também pode ser potencialmente letal. Este artigo oferece uma revisão da situação atual e fornece informações úteis para o clínico geral.

Hemoderivados

Uma vez obtido o sangue de doador apropriado, ele deve ser transferido para uma bolsa ou seringa contendo anticoagulante e nutrientes para as células sanguíneas. Alguns médicos-veterinários preferem realizar a coleta de sangue em sua própria clínica, utilizando bolsas coletoras comerciais – que, no caso de cães, costumam conter a quantidade adequada de anticoagulante, geralmente CPD (Citrato-Fosfato-Dextrose), para o volume de sangue a ser doado (Figura 1). No caso de coleta de sangue em um gato, a seringa deve ser previamente preparada com 1 mL de anticoagulante para cada 7 mL de sangue a ser coletado (Figura 2). Outra opção é a aquisição de hemoderivados prontos para uso em bancos de sangue especializados (Figura 3), o que oferece várias vantagens: permite o uso do melhor produto para uma doença específica, reduz o risco de reações transfusionais e garante o uso eficiente de todos os recursos sanguíneos 1,2. Diferentes produtos podem ser obtidos a partir do sangue coletado. Tais produtos, por sua vez, podem ser amplamente classificados em produtos eritrocitários e produtos plasmáticos (i. e., componentes do plasma), conforme mostrado no Quadro 1 3.

Subdivisão dos produtos

Quadro 1. Subdivisão dos produtos que podem ser obtidos a partir do sangue canino ou felino.

O sangue extraído de um cão

Figura 1. O sangue extraído de um cão pode ser coletado em uma bolsa comercial contendo o anticoagulante adequado.
© Animal Blood Bank Benelux

A coleta de sangue em um gato

Figura 2. No gato, o sangue pode ser coletado da veia jugular, utilizando uma seringa previamente preparada com anticoagulante.
© Animal Blood Bank Benelux

Bancos de sangue comerciais

Figura 3. Os bancos de sangue contam com equipamentos sofisticados para garantir que os hemoderivados sejam coletados, embalados e armazenados em condições ideais.
© Animal Blood Bank Benelux

Produtos eritrocitários

  • Sangue total fresco – contém glóbulos vermelhos e brancos, plaquetas, fatores de coagulação e proteínas plasmáticas, como a albumina 4. Para ser considerado “fresco”, ele deve ser transfundido dentro de 6-8 horas após a coleta 5.
  • Sangue total armazenado – trata-se do sangue total que não foi transfundido nas primeiras 8 horas após sua coleta; por isso, ele possui baixa quantidade de plaquetas e fatores de coagulação. Deve ser armazenado sob refrigeração a 1-6ºC (33.8-42.8ºF), podendo ser utilizado até 21-28 dias após a coleta 3,4.
  • Papa ou concentrado de hemácias – sedimento obtido pela centrifugação do sangue total e separação das hemácias do plasma. Trata-se de um produto com menor pressão oncótica, sem fatores de coagulação e com hematócrito em torno de 70-80% (Figura 4). Se necessário, os glóbulos brancos podem ser removidos por filtração para obter uma papa ou concentrado de hemácias pobre em leucócitos 3,4,5.
Unidade de papa ou concentrado de hemácias felino.

Figura 4. Unidade de papa ou concentrado de hemácias felino.
© João Araújo/Susana Neves

Produtos plasmáticos

Esses produtos são obtidos a partir do sangue total centrifugado e contêm todas as proteínas funcionais do sangue em suas concentrações originais, desde que a centrifugação seja realizada em até 8 horas após a coleta.

  • Plasma fresco congelado – a menos que o plasma fresco seja administrado dentro de 1 hora após o processamento, 6, ele deve ser congelado. Para ser classificado como plasma fresco congelado, ele deve ser congelado dentro de 6-8 horas após a coleta, pois isso preservará todos os fatores de coagulação e proteínas 3 (Figure 5).
  • Plasma congelado armazenado – também referido simplesmente como plasma congelado; esse termo se aplica ao plasma fresco congelado (a) se o seu tempo em congelamento passou da data de validade, (b) quando a centrifugação ou o congelamento é realizado mais de 8 horas após a coleta, ou (c) depois de ter sido descongelado e congelado novamente sem ser aberto. O plasma fresco armazenado contém menos fatores de coagulação e proteínas do que o plasma fresco congelado 3,6.
  • Crioprecipitado e criossobrenadante – o crioprecipitado é obtido pelo descongelamento controlado de uma unidade de plasma fresco congelado e posterior centrifugação; o produto resultante é um concentrado que contém proteínas insolúveis, fator VIII, fator de von Willebrand (FvW) e fibrinogênio 1. O sobrenadante que é extraído durante a preparação do crioprecipitado recebe o nome de criossobrenadante (ou plasma criopobre); esse sobrenadante não contém FvW, fibrinogênio e proteínas insolúveis, mas preserva albumina, proteínas hemostáticas e imunoglobulinas 6.
  • Plasma rico em plaquetas e concentrado de plaquetas – os produtos plaquetários têm vida curta e demanda limitada; por essa razão, os bancos de sangue só os produzem sob demanda. O plasma rico em plaquetas é o resultado da centrifugação suave do sangue total fresco 1 (Figura 6), enquanto o concentrado de plaquetas é obtido pela centrifugação do plasma rico em plaquetas, um processo que “agrupa” as plaquetas 7.
Plasma fresco congelado

Figura 6. Unidade de sangue canino em um recipiente isolado, pronto para ser centrifugado e obter os produtos derivados do plasma.
© João Araújo/Susana Neves

Unidade de sangue canino

Figura 6. Unidade de sangue canino em um recipiente isolado, pronto para ser centrifugado e obter os produtos derivados do plasma.
© João Araújo/Susana Neves

Indicações

As indicações para transfusão de hemoderivado apropriado incluem anemia, coagulopatias, sepse, coagulopatia intravascular disseminada (CID) e deficiências de fatores de coagulação específicos 3, embora a decisão de transfundir ou não deva ser tomada após considerar todos os possíveis riscos e benefícios. Uma avaliação minuciosa deve ser feita para identificar as necessidades de transfusão do receptor e, se a transfusão de sangue total não for indicada, para escolher o hemocomponente mais adequado. Isso permite aproveitar ao máximo o uso de uma unidade de sangue e reduz o risco de reações transfusionais 8,9.

Produtos eritrocitários

A correta oxigenação dos tecidos depende da concentração de hemoglobina na circulação e do débito cardíaco 3. Como quase todo o oxigênio é transportado no sangue pela hemoglobina, a forma de aumentar o transporte de oxigênio é através da transfusão de algum produto eritrocitário. A determinação do volume globular/hematócrito e da concentração de hemoglobina, juntamente com o exame físico do paciente, ajudará o médico-veterinário a decidir se o animal necessita de transfusão 8. Embora não haja um valor exato de hematócrito abaixo do qual se considere a necessidade de uma transfusão pelo paciente, a anemia (atribuída a sangramento, hemólise ou eritropoiese ineficaz) é o principal motivo para a transfusão de hemácias, e alguns estudos sugerem que a perda de sangue seja a principal indicação de transfusão em cães e gatos 10. Os hemoderivados preferidos são o sangue total fresco ou a papa ou concentrado de hemácias. O sangue total fresco fornece todos os componentes sanguíneos fisiológicos (plaquetas funcionais, proteínas plasmáticas, fatores de coagulação) e é uma excelente opção nos casos de anemia em que também há coagulopatia ou trombocitopenia 8. Em casos de hemorragia maciça (perda de mais de 50% do volume circulante), o sangue total fresco é o produto de escolha para restabelecer a função de transporte de oxigênio e a pressão oncótica também 11.

A administração de papa ou concentrado de hemácias é indicada no caso de anemia em paciente normovolêmico (anemia hemolítica ou arregenerativa; tanto aguda como crônica). Como a papa ou concentrado de hemácias apresenta um hematócrito de 70-80% e uma pressão oncótica menor que a do sangue total, a probabilidade de causar sobrecarga hídrica é menor em receptores normovolêmicos 1,11. Esse concentrado de hemácias também pode ser utilizado em pacientes hipovolêmicos, mas também se deve transfundir o plasma fresco congelado, uma vez que existe a necessidade de aumentar a pressão oncótica e repor outros elementos sanguíneos 8.

Produtos plasmáticos

O uso de produtos derivados do plasma é documentado em várias situações, incluindo tratamento de hipotensão e como suporte oncótico, para restaurar os fatores de coagulação em caso de coagulopatias, hemorragias internas e sangramentos incontroláveis de mucosas, e como tratamento de suporte em caso de sepse, traumatismo e dilatação vólvulo-gástrica 12.

Foi demonstrado que o plasma fresco congelado preserva a funcionalidade das proteínas hemostáticas por até um ano 13 e é a principal opção para o tratamento de coagulopatias 12. O plasma congelado/armazenado pode reter fatores de coagulação não lábeis, como a vitamina K, e é indicado para o tratamento de coagulopatias atribuídas a envenenamento por rodenticidas (anticoagulantes) 1.

O crioprecipitado é o produto plasmático mais indicado para (i) o fornecimento do fator de von Willebrand (FvW), (ii) o tratamento de hemofilia A e (iii) os casos de deficiência ou disfunção do fibrinogênio 6, enquanto o criossobrenadante é a opção mais barata para o tratamento da deficiência de vitamina K 6.

Também foi descrito o uso de produtos derivados do plasma em casos de hipoproteinemia, utilizando o plasma fresco congelado e o criossobrenadante com albumina. No entanto, é necessária uma dose de 20-25 mL/kg desses produtos para aumentar a concentração de albumina em 0,5 g/dL 6.

Os produtos de plaquetas são recomendados principalmente em hemorragias secundárias a trombocitopenia grave ou a outras trombopatias. Se a causa da hemorragia for coagulação intravascular disseminada (CID) ou trombocitopenia imunomediada, os produtos plaquetários também podem ser utilizados, mas são menos úteis, pois as plaquetas transfundidas podem ser rapidamente destruídas 14.

Na experiência dos autores, dada a maior acessibilidade a hemoderivados dos bancos de sangue, os componentes mais amplamente disponíveis são a papa ou concentrado de hemácias e o plasma fresco congelado e, portanto, constituem os produtos mais utilizados para atender a todas as necessidades listadas anteriormente 6.

João Araújo

Os hemoderivados prontos para uso podem ser adquiridos em bancos de sangue especializados, o que oferece diversas vantagens: permite a utilização do melhor produto para uma doença específica, reduz o risco de reações transfusionais e garante o uso eficiente de todos os recursos sanguíneos.

João Araújo

Tipos sanguíneos

Tanto os cães como os gatos possuem tipos sanguíneos específicos da espécie, definidos por proteínas antigênicas encontradas na superfície das hemácias. Tais proteínas podem induzir reações adversas quando introduzidas na circulação de outro paciente. Por essa razão, deve-se ressaltar a importância de administrar apenas sangue compatível ao receptor e determinar o tipo sanguíneo e/ou realizar provas cruzadas em todos os animais.

Cães

Os tipos sanguíneos de cães são classificados de acordo com o sistema DEA (do inglês, Dog Erythrocyte Antigen, Antígeno Eritrocitário Canino), que originalmente incluía os tipos DEA: 1.1, 1.2, 1.3, 3, 4, 5, 6, 7 e 8. Os antígenos 6 e 8 não são mais rotineiramente identificados em função da falta de disponibilidade de soro para a tipagem desses grupos. Em 2007, foi relatada a presença de um novo antígeno, denominado Dal 15 e, mais recentemente, dois outros novos antígenos foram descritos – Kai 1 and Kai 2 16. O DEA 1.1 demonstrou ser o tipo com maior potencial antigênico, além de ser conhecido por ter herança autossômica dominante; portanto, atualmente, há evidências para classificar os cães como DEA 1.1 positivos ou negativos 17. Esse antígeno pode desencadear uma reação hemolítica grave em cães DEA 1.1 negativos que recebem uma segunda transfusão, em virtude de uma sensibilização prévia (uma vez que não existem aloanticorpos naturais) 18; por isso, sempre é necessário determinar se o doador e o receptor são DEA 1.1 positivos ou negativos.

Em um estudo, observaram-se reações transfusionais hemolíticas agudas após sensibilização ao antígeno DEA 4, mas como 98% dos cães são portadores desse antígeno, há risco de hemólise aguda em 2% dos cães negativos para esse antígeno e somente quando já receberam uma transfusão prévia. Os outros antígenos DEA (3, 5 e 7) parecem ter menor importância clínica, pois não foi descrita nenhuma reação transfusional 19.

Gatos

O sangue felino é classificado de acordo com o sistema AB, com 3 tipos sanguíneos principais (A, B e AB), sendo o tipo A o mais frequente. Diferentemente dos cães do tipo DEA 1.1, os gatos apresentam aloanticorpos naturais que podem causar reações hemolíticas 20. Recentemente, foi identificado um novo tipo sanguíneo, denominado Mik 21. Esse fato tem relevância clínica, pois já foi descrita a ocorrência de reação hemolítica à transfusão em gato tipo A que nunca havia recebido uma transfusão antes 21. Com isso em mente, antes de uma transfusão, sempre se devem realizar provas cruzadas em todos os gatos 22.

Determinação do tipo sanguíneo

A tipagem sanguínea pode ser realizada em laboratório comercial ou na própria clínica. Atualmente, existem três tipos de testes ou kits comerciais para a determinação do tipo sanguíneo por meio de diferentes métodos: cartão de aglutinação, fita de imunocromatografia, e tubo com gel. O funcionamento de todos os testes é semelhante e consiste na adição de uma amostra de sangue do paciente a um antissoro monoclonal ou policlonal; uma mudança de cor indica um resultado positivo (reação de hemaglutinação) (Figura 7). Em um estudo, foi relatado que os métodos de cartão e fita de imunocromatografia eram uma opção razoável em casos de emergência, mas o tubo com gel parece ser o método de escolha para a identificação de doadores e receptores do tipo DEA 1.1 23.

Fita de imunocromatografia para a determinação do grupo sanguíneo no gato

Figura 7. Fita de imunocromatografia para a determinação do grupo sanguíneo no gato.
© João Araújo/Susana Neves

Provas cruzadas

Enquanto a tipagem sanguínea se baseia na presença de antígenos nas hemácias, as provas cruzadas (que podem ser realizadas na própria clínica) se concentram na possível presença de anticorpos no plasma e permitem saber se há um risco de reação entre o sangue do doador e o sangue do receptor. Trata-se de um processo de duas etapas, com uma prova cruzada maior e outra menor 19. A prova cruzada maior verifica a compatibilidade entre as hemácias do doador e o plasma do receptor; a prova cruzada menor testa a compatibilidade entre o plasma do doador e as hemácias do receptor. Qualquer reação de aglutinação indica incompatibilidade entre doador e receptor.

A compatibilidade cruzada em cães é indicada quando o histórico de transfusões anteriores é desconhecido, quando ocorreram reações em transfusões prévias ou quando uma transfusão de hemácias foi realizada há mais de 4 dias 9. Em todos os gatos, sempre se devem realizar provas cruzadas de compatibilidade.

Atualmente, existem três tipos de testes disponíveis: o teste de aglutinação em tubo padrão, o teste em tubo com gel e o teste com fita de imunocromatografia, sendo o primeiro deles o teste de escolha 19.

Qual volume transfundir?

O volume de hemoderivado a ser administrado depende de vários fatores, como o tipo de produto, o efeito desejado e a resposta do paciente à transfusão.

No caso de papa ou concentrado de hemácias, pode ser utilizada a seguinte fórmula:

Volume (mL)= 85 (cão) or 60 (gato)  x peso corporal (kg) x [(Hematócrito desejado - Hematócrito atual)/Hematócrito do doador]

Caso se faça uso de um produto plasmático para o tratamento de hipotensão, a taxa recomendada é de 10 mL/kg por um período de 2-4 horas; a transfusão pode ser repetida a cada 6-24 horas, conforme a necessidade. Em casos graves (por exemplo, hipotensão refratária), pode-se aumentar a taxa para 20-60 mL/kg. No caso de hipoalbuminemia grave, uma única transfusão de 10-20 mL/kg durante 2-4 horas pode aumentar os níveis de albumina em 0,2 g/dL.

O plasma também pode ser administrado em pacientes com hipoalbuminemia a uma taxa de infusão constante de 1,5-3 mL/kg/hora durante 12-24 horas para alcançar um aumento de 0,3-0,5 g/dL.

No caso da administração de um concentrado de plaquetas, devem-se utilizar 40-70 mL/10 kg, duas ou três vezes ao dia até fazer efeito. A cada transfusão, o número de plaquetas deve ser aumentado em 10-40 x 103/µL.

Maria João Dourado

Os hemoderivados costumam ser administrados utilizando a simples gravidade e, de modo geral, devem-se evitar as bombas de infusão, sobretudo quando se utiliza papa ou concentrado de hemácias, pois pode ocorrer hemólise.

Maria João Dourado

Preparo e administração de hemoderivados

Existem certos aspectos que podem afetar a qualidade do hemoderivado e o sucesso da transfusão. Em primeiro lugar, antes de iniciar o procedimento, é importante avaliar a integridade da bolsa de armazenamento, bem como a cor do componente e sua consistência. Qualquer unidade que apresente coágulos, cor anormal ou aparência incomum não deve ser utilizada. Uma verificação dupla deve ser feita para garantir que a unidade correta seja administrada ao animal certo.

O aquecimento das unidades de hemácias refrigeradas não é considerado necessário em pacientes normovolêmicos e normotérmicos, pois as células podem se deteriorar mais rapidamente e o crescimento de microrganismos pode ser favorecido. Esse processo só deve ser considerado em caso de receptores hipotérmicos, recém-nascidos ou animais que necessitam de grande volume de sangue. Quando o aquecimento é necessário, a unidade pode ser mantida a temperatura ambiente por 30 minutos ou colocada dentro de um saco plástico selado e, depois, em banho-maria (< 37ºC) por 15 minutos 3,8.

Os produtos de plasma congelado devem ser descongelados lentamente antes da administração ao paciente; novamente, o produto pode ser colocado dentro de um saco selado e, depois, em banho-maria (< 37ºC) com monitoramento rigoroso da temperatura 9.

A via de escolha para a administração de hemoderivados é a intravenosa, utilizando cateter de 20-22G (que não deve ser colocado antes das 24 horas anteriores à transfusão). O cateter deve ser utilizado apenas para transfusão; deve-se evitar a administração concomitante de medicamentos, fluidos não isotônicos, ou Ringer com lactato. Para lavar o cateter durante a transfusão, em caso de necessidade, deve-se usar soro fisiológico a 0,9%. Uma vez finalizada a transfusão, pode-se colocar solução salina no equipo de infusão para aproveitar o hemoderivado que permanece no sistema e evitar desperdício. É recomendável evitar a administração de anti-histamínicos e antipiréticos durante a transfusão 22. Quando a via intravenosa não for possível (por exemplo, em neonatos), pode-se colocar um cateter intraósseo; as células chegarão à corrente sanguínea em questão de minutos 4.

As transfusões devem ser realizadas com equipos de infusão que possuam um filtro (170-260 µm) para reter coágulos e partículas de microagregados 9, principalmente no caso da administração de sangue total (Figura 8). Caso seja utilizada uma bomba de seringa (um tipo de bomba de infusão) para a administração de hemoderivados, deve-se usar um filtro pediátrico com espaço morto reduzido ou um filtro de microagregados de 18-40 µm. Os hemoderivados são normalmente administrados por meio da simples gravidade. De modo geral, as bombas de infusão devem ser evitadas, sobretudo ao usar papa ou concentrado de hemácias, pois é possível observar a ocorrência hemólise 24. Caso haja necessidade de uma bomba de infusão, é recomendável recorrer às instruções do fabricante para garantir que a unidade consiga transfundir os hemoderivados com segurança 8.

Sistema de infusão com filtro

Figura 8. O sistema de infusão deve possuir um filtro interno para impedir a passagem de qualquer coágulo ou partícula de microagregado.
© Shutterstock

A taxa de administração depende do estado clínico do paciente. Em um animal normovolêmico, inicialmente se utiliza uma taxa lenta (0,25-0,5 mL/kg/h) nos primeiros 15-30 minutos e, se nenhuma reação adversa for observada, aumenta-se para 2-10 mL/kg/h em cães e 3-5 mL/kg/h em gatos. A velocidade máxima recomendada para evitar sobrecarga hídrica é de 10-20 mL/Kg/h. No caso de possível sobrecarga hídrica (por exemplo, em distúrbios cardíacos ou renais), a taxa deve ser de 1-3 mL/kg/h, começando com o mínimo (extremo inferior) e aumentando até o máximo (extremo superior), caso não ocorram reações adversas 1. Em caso de grave perda sanguínea e hipovolemia, uma correção rápida do volume com papa ou concentrado de hemácias a uma taxa de 20-60 mL/kg/h pode ser tolerada 8. Para que a transfusão seja mais rápida (ou seja, se houver a necessidade de taxas mais altas), pode-se proceder à compressão manual da bolsa de sangue ou à administração em bólus com seringa.

A transfusão não deve durar mais de quatro horas, pois isso aumentaria o risco de contaminação bacteriana. Em pacientes com risco de sobrecarga hídrica, a taxa de infusão mínima recomendada pode ser incompatível com a duração de quatro horas; nesse caso, a transfusão deve ser fracionada, refrigerando o produto não utilizado, conforme a necessidade 4.

Monitoramento do receptor

O monitoramento do paciente deve começar antes da administração de qualquer hemoderivado através da medição de hematócrito, proteínas totais, sólidos totais, frequência cardíaca, frequência respiratória, cor das mucosas, temperatura corporal e pressão arterial. A cor da urina também pode ser útil 4. Um exame físico deve ser realizado a cada 15-30 minutos durante o procedimento e em 1, 12 e 24 horas após o término da transfusão. O hematócrito, as proteínas totais, os sólidos totais e a cor da urina também devem ser avaliados imediatamente após a transfusão e, na sequência, 12 e 24 horas depois 3,22. Caso se faça uso de um produto derivado do plasma, devem-se avaliar o estado de coagulação do paciente, bem como o hematócrito e/ou as proteínas/sólidos totais antes e depois da transfusão, para verificar a eficácia do tratamento 6.

Reações adversas

Foram identificadas várias reações adversas possíveis após a transfusão de hemoderivados, incluindo:

Reações transfusionais febris não hemolíticas

Trata-se de uma reação aguda que pode ou não ser de natureza imunológica. Os pacientes apresentam uma temperatura superior a 39ºC ou um aumento da temperatura de mais de 1ºC em relação àquela registrada no exame físico feito antes da transfusão. Para diagnosticar essas reações, deve-se descartar a presença de infecção subjacente, reação transfusional hemolítica aguda, lesão pulmonar aguda relacionada com a transfusão, infecção transmitida por transfusão 25.

Reações respiratórias

Essas reações incluem dispneia associada à transfusão, sobrecarga circulatória ligada à transfusão e lesão pulmonar aguda relacionada com a transfusão. A dispneia associada à transfusão é uma reação aguda, na qual o paciente desenvolve angústia ou desconforto respiratório grave dentro de 24 horas após a transfusão. Para diagnosticá-la corretamente, devem-se descartar sobrecarga circulatória transfusional e lesão pulmonar aguda relacionada com a transfusão 25. A sobrecarga circulatória ligada à transfusão é uma reação aguda, não imunomediada, secundária ao aumento da volemia (i. e., volume sanguíneo), em que o paciente apresenta sinais de angústia/desconforto respiratório e edema pulmonar dentro de 6 horas após a transfusão 25. A lesão pulmonar aguda relacionada com a transfusão é secundária à interação antígeno-anticorpo, sendo caraterizada por hipoxemia aguda e edema pulmonar não cardiogênico, quadros estes que se desenvolvem em até 6 horas após a transfusão 25.

Reações transfusionais alérgicas

Essas reações são agudas e imunomediadas, secundárias a uma resposta de hipersensibilidade tipo I a algum antígeno. Elas são caracterizadas por uma resposta anafilática (de moderada a potencialmente letal), ocorrendo dentro de 4 horas após a transfusão. Em cães, os sinais clínicos podem incluir eritema, urticária, prurido, angioedema, distúrbios gastrointestinais e hemoabdômen, evoluindo para um colapso. Em gatos, os sinais são principalmente respiratórios, embora já tenha sido descrita a presença de prurido e sinais gastrointestinais 25.

Reações hemolíticas

Elas podem ser de natureza aguda ou tardia. A reação transfusional hemolítica aguda é caracterizada por uma hemólise aguda que pode ou não ser de natureza imunológica; trata-se de uma reação não infecciosa que ocorre durante a transfusão ou em até 24 horas após esse procedimento 25. As reações tardias (de 24 horas a 28 dias depois) também não são infecciosas e podem ou não ser imunomediadas; tais reações são secundárias ao processo de lise ou à depuração (clearance) acelerada das hemácias transfundidas 25.

Considerações finais

As transfusões sanguíneas eram originalmente uma opção terapêutica que somente os centros de referência podiam oferecer, mas, graças à maior (e pronta) disponibilidade de hemoderivados e à possibilidade de determinar o tipo sanguíneo (e ainda realizar os testes de compatibilidade cruzada) na própria clínica, a maioria dos médicos-veterinários pode atualmente transfundir seus pacientes com hemoderivados de boa qualidade. Como os hemoderivados são um recurso valioso e limitado, é importante utilizá-los de forma racional e minimizar o desperdício; a transfusão não costuma ser o único e definitivo tratamento. É fundamental aproveitar ao máximo os diferentes hemoderivados e não utilizar o sangue total como um “coringa” (ou seja, que serve para tudo). Isso implica a necessidade de se fazer um diagnóstico correto para garantir um bom resultado. Por fim, é essencial proteger o bem-estar do doador de sangue durante todo o processo de coleta.

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João Araújo

João Araújo

O Dr. Araújo se formou em 2006 pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) em Portugal Leia mais

Maria João Dourado

Maria João Dourado

A Dra. Maria João se formou em 2018 pela UTAD e fez estágio no último ano de faculdade no serviço de Emergência e Cuidados Intensivos do Hospital Veterinário Central Leia mais

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